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A Construção Política (sobre a poesia de Affonso Romano de Sant'Anna) [1]

Quando um dia alguém fizer um estudo mais aprofundado sobre a poesia de Affonso Romano de Sant’Anna, não deverá omitir uma interessante e possível relação com a poesia social do Romantismo. Ambas apresentam efeitos retóricos comuns, que se estendem da construção do poema até ao seu tratamento temático. Se a poesia romântica era declamada nas praças públicas, nos salões e nos teatros, e investia na grande eclosão da imprensa escrita, a poesia de Affonso espalha-se hoje pelos jornais e muitas vezes pela televisão – quase sempre escrita no calor da hora. E, como toda poesia de cunho político, a sua tem uma intenção: se – alongando-se a comparação – a poesia de Castro Alves é marcada pela questão do negro escravizado, a poesia de Affonso é obcecada pelo mito da democracia.

Antes, porém, de se analisar essa característica predominante, é preciso verificar que a atitude política do poeta não está apenas fundamentada no engajamento, mas também numa crítica literária exercida no corpo dos poemas. Não se tata de uma crítica de arte, à maneira de João Cabral de Melo Neto, poeta que de certo modo ainda presta culto a muitas questões da vanguarda, como a do espaço em branco e a do rigor formal: pelo contrário, Affonso é dos raros poetas a fazer versos contra as vanguardas; e, mais exatamente, o único entre os contemporâneos, embora tenha sofrido notável influência vanguardista em sua formação literária. Mas sua libertação não foi completa: é inegável que ainda pulsa em seus versos um batimento transmitido pela poesia práxis e ainda pela poesia concebida por outro mineiro afonsino, Affonso Ávila.

A conjunção da poesia social – que assume em Sant’Anna um tom fortemente declamatório – com os recursos formais já citados explicam em boa parte a grande presença de trocadilhos e de rimas que se repetem à exaustão, tornando assim o poema memorizável – o que apenas confirma uma das intenções do poema político. Pois trata-se, enfim, da poesia de um poeta que prefere definir-se como “jornalista da alma humana”, e que se afasta totalmente da literatura quando afirma escrever “uma poesia que eu não quero literária, mas que transmita sangue e vida”, como consta em um de seus livros de crônicas. [2] Está claro que tal projeto não é possível sem que se tropece em inúmeras contradições. Em seu A catedral de Colônia e outros poemas (Rio de Janeiro: Rocco, l985), um poema como “O Azar de Mallarmé” é menos uma crítica ao poeta francês do que ao uso de sua poesia em terras brasileiras. Atacando agressivamente os “pervertidos narcisos” que poematizaram e teorizaram com “mãos de viciados” (leia-se: os concretistas), Affonso forja de qualquer modo uma crítica algo ingênua. Pois não é ele mesmo quem estabelece questionáveis oposições entre literatura e vida? Pois não é ele mesmo quem deixa a sua ars poetica inflitrar-se de centenas de referências apenas detectáveis por um público de formação acadêmica – que, muitas vezes, mal consegue perceber uma ironia que se apresenta intertextualmente? E o que pensar, ainda, de um constante tom didático de sua poesia, que por definição deveria estar longe da lógica fascinante da existência?

A poesia de Affonso Romano tem verdadeiro fascínio pela construção mítica da História – e aqui o poeta prefere noções arquetípicas e irracionalistas, deixando atônitos os que optaram pela dialética ou foram canonizados pelo verbo marxista. Nesses casos, sua poesia assume um tom de dolorosa perplexidade, perdida numa espécie de labirinto giratório em que os dramas da condição humana se repetem e se renovam.

É o caso do longo poema “A Catedral de Colônia”, que dá nome ao seu livro mais recente. A ideia de escrevê-lo foi inspirada pela conturbada história da construção da própria catedral, iniciada em l248 e somente concluída seis séculos depois. Affonso lança mão de uma atraente metáfora, sabendo que os alemães associavam o fim do mundo à conclusão da catedral – e ao fato de ter sido o único monumento de Colônia que resistiu às trepidações da II Guerra Mundial. À maneira de A grande fala do índio guarani (1978), trata-se de um poema cósmico no qual transitam os seres e suas guerras, simbolizados pelas pedras que constroem um destino:

esta catedral é o corpo vivo da História 

e a história do próprio Eu.

Nessa viagem sentimental, Affonso visita a sua infância mineira, misturando os tempos históricos com as experiências sociais e pessoais. Poesia repleta de ideais utópicos, nela não é raro encontrar auroras, alvoreceres e novos dias – como condiz a um discurso afinal otimista e afirmativo. A poesia de Affonso é muitas vezes prosaica – à maneira do versiprosa drummondiano – e até mesmo datada. De qualquer modo, a sua construção política é obra já bem adiantada. Basta saber se, como a catedral de Colônia, possui a qualidade necessária, mesmo na era do consumo, a toda obra de arte: resistência.

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[1] Jornal do Brasil, 5.1.1986.

[2] Política e Paixão (Rio de Janeiro: Rocco, l984). Uma crítica muito pertinente da distinção entre literatura e vida foi feita por Antonio Candido, a propósito do romance Cacau, de Jorge Amado. Cf. “A Revolução de l930 e a Cultura”, in A Educação Pela Noite e Outros Ensaios (São Paulo: Ática, l987), p. l96.

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