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A Mais Nobre Decadência (sobre a poesia de Pedro Paulo de Sena Madureira) [1]

Que não se duvide ser a morte o tema primordial da poesia de Pedro Paulo de Sena Madureira; a morte, bem como os afluentes que a formam, a velhice e o enfraquecimento, e as experiências mal dominadas que, quanto mais numerosas, mais provocam hesitações. A morte já estava anunciada em seu primeiro livro, Devastação (1976): livro de estreia, mas de reconhecível maturação, no qual a vida do poeta – e não a sua morte – recebia uma primeira bipartição que conforma os seus poemas: “Mordaças” e “Revelações”. Uma conformação talvez não bipolar, mas singularmente bifurcada, um pouco à maneira de Jean-Paul Sartre que, na autobiografia Les mots, dividiu a sua vida em “ler” e “escrever”. A lembrança não é despropositada: Devastação testemunha e, mais ainda, celebra o convívio com a leitura de autores os mais diversos, que formam a confraria espiritual do poeta. As leituras designam, justamente, a parte relativa às “Revelações” – e são mesmo experiências epifânicas que desvelam o gosto pela literatura francesa (até pelo pouco citado Francis Ponge) e pelos clássicos de língua portuguesa e, vá lá, brasileira. É num desses poemas, “Machado de Assis”, que se encontra o único momento humorado de toda a sua poesia:

o que seria do mundo 

se todo funcionário público 

fosse como tu?

Os demais poemas são da mais inteiriça gravidade, marcados por um tom inquisitivo e por efeitos de estilo quase sempre classicizantes. Pedro Paulo de Sena Madureira não escreve tantas vezes assim na primeira pessoa, mas é dificílimo entrever nos seus poemas um só verso em que não seja marcante a experiência pessoal – que o poeta logo agrega à experiência humana, muito consciente da comum solidão e do destino comum, a exemplo do que escreveu no poema “Marcel Proust”:

Assim na terra 

como no céu 

um só problema: 

no princípio ou no fim 

ninguém.

Sua poesia inquisitiva (de que é exemplo o poema “Meus Rochedos?”, de Devastação) repercute ainda vigorosamente no livro mais recente, Rumor de facas (São Paulo: Companhia das Letras, 1989). Ali se encontram não apenas as indagações de um poema como “Onde Achar-te?”, mas também o adensamento do tema da morte – sobretudo como desdobramento da velhice. Desdobramento que contamina a fons et origo da vida:

Primeiros sinais, no amor, 

de covardia e silêncio. 

(“Primeiros Fios Brancos”)

De todas as revelações literárias que aparecem ao poeta, a de Mallarmé é certamente a mais duradoura: talvez não tanto pelo relativo hermetismo de muitos dos poemas de Pedro Paulo de Sena Madureira, mas por um refinamento (às vezes, reconheça-se, excessivo porquanto arcaico), por sua concisão suntuosa; e, sobretudo, por uma crença toda pessoal no aspecto sagrado ou religioso, porém jamais litúrgico da poesia – aspecto tão comemorado por Octavio Paz em El arco y la lira. Poesia epifânica, sim, mas também literatura totêmica: Pedro Paulo de Sena Madureira escreve poesia culta e cultual, e expressa uma admiração apaixonada pela palavra e por sua contraditória inefabilidade. Daí porque, em Rumor de facas, tantas vezes se leia acerca da imobilidade e da impotência, como na última estrofe do poema “Solta as Asas”, ou alusivamente em “Estou Que Não Me Sei”, mas francamente nesse poema que não oculta a influência mallarmaica:

Água invisível entre dois vidros: 

seta sempre indecisa entre 

o arco que a dispara e o alvo que a detém: 

pássaro que ignora de onde vem 

e não quer saber para onde vai 

– o poema 

é a pedra que sobe 

ou a pedra que cai?

Que não se pense, entretanto, estar o poeta restrito à sua fóbica e obsessiva tanatologia; sua não rara oscilação entre a vida e a morte, entre mordaças e revelações, entre o compor, o decompor e o recompor explica, por exemplo, a repetida imagem da ave fênix em alguns poucos poemas, imagem de quem acredita piedosamente no renascimento. O poeta de tanta morte e de tanta coisa derradeira é também de um erotismo que não se recomenda a nenhuma leitura desatenta ou principiante: erotismo ensimesmado muitas vezes, à maneira do de Konstantinos Kaváfis, mas erotismo celebrante e festejado. Aquela ave renascida pode ser a drummondiana águia que fende os ares e arrebata, do poema “Rapto”, que no seu voo busca o melhor modelo “da natureza ambígua e reticente”. Violento, seu erotismo concebe imagens das mais incomuns na poesia brasileira, como as da última estrofe de um poema de Devastação:

Nada resta,

mas a haste lesta, longa 

(calcário caule que empedraste 

e não machucaste), achaste 

a fresta de amor e festa 

em que a plantaste. 

(“Ficaste Como Um Louco em Minhas Mãos”)

Ou então, em Rumor de facas, esses versos iniciais:

Amar-te. 

Ter-te em mim 

por dentro de todos os meus limites.

Esta a inspiração de uma poesia consciente de sua dicção enobrecida pelo sofrimento e pela consciência do fim. De uma poesia à qual aprazem as elisões dos verbos, a sugestão das sensações e demais efeitos alusivos. E, por uma via erudita e remissiva, consegue livrar-se de questões impertinentes e experimentar as mais essenciais. Poesia que guarda um gosto decadente, mas que se revolta e propõe ao devir um paradoxo terrível, como o que surge em seu livro mais recente:

Por que a mania de em tudo adivinhar asas 

se até nos pássaros elas estão quebradas?

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[1] Verve, n. 37, julho de 1990.

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