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Apresentação de Adriano Espínola

Uma das tendências mais acentuadas da literatura brasileira, neste final de século/milênio, reside na diversidade formal e estilística. Não há mais hegemonia estética em disputa, assim como historicamente não é mais possível nenhuma hegemonia ideológica, que venha a sustentar vanguardismos políticos ou sociais. As mais caras utopias e algumas confortáveis certezas caíram literalmente do muro.

Ingressarmos em definitivo na pós-modernidade, na baixa-modernidade ou na neomodernidade? Não importa o rótulo que se dê à nossa época de extrema mobilidade cultural: o fato é que os radicalismos e experimentalismos estético-ideológicos tornaram-se maleáveis, amaciaram-se: tempos de pensiero debole (Vattimo). As representações mentais e formais, deslocadas e recicladas, buscam por aí encontrar pontos de cristalização ou de fundação, a partir de estratégias individuais no jogo da história e da arte, nesse momento em que a modernidade, em suas fases, se encontra em processo de mutação.

Na área da poesia, essa diversidade estilística algumas vezes pode ser percebida numa só obra, como é o caso de Estante, de Felipe Fortuna, na qual autor reúne três diferentes “livros”, sendo que o último deles parece apontar simbolicamente para as transformações a que estamos assistindo.

No primeiro, intitulado “(Não É)”, encontram-se dezenove poemas com os mais variados temas: desde a aceitação do ato amoroso (“A Escola da Sedução”) e poético (“luz aberta / no papel, que flagra / minha caligrafia / e muitas palavras”) a flagrantes da vida cotidiana, passando pelo futebol (“Partida”) e pelas cidades visitadas, voltando, no final, à perplexidade metapoética na “tela do texto” e à escritura/leitura lenta, entre a vigília e o sono, daquilo que é e “não é” literatura, com suas notícias e recortes que “formam esse livro que nem abro nem fecho, / todos os dias estampados na calçada”. De um modo geral, esses poemas guardam um tom de crônica, registros circunstanciais da vida do autor, diplomata de carreira e escritor consciente de que “o texto é jamais tecê-lo, mas desfiá-lo em desafio”.

Já o segundo “livro” –“Poemas da Pele” – reúne quinze poemas dedicados à celebração do corpo da mulher e do ato amoroso. Aqui, a unidade temática se faz acompanhar de uma linguagem poética mais densa e precisa, porque sabe que seu “corpo e outros corpos sempre em luta: / caio dentro da arena de areia extensa/ em que meu sangue e as palavras se misturam”. Drummondianamente repara que “Em Minas não há montanhas, mas teu corpo: / erguido frente ao meu, e eu te decifro.” Também Cabral de “A Mulher Sentada” é aqui retomado, quando Fortuna avista a mulher na cama entre lençóis: “Mulher no branco, mulher / no centro, súbito sono, / pousada no exílio, enquanto, / mais lenta, respira o tempo.”

Se Eros confere unidade temática a essa parte, imprime ao mesmo tempo uma elevação da temperatura estética dos versos, como no poema “Os Dois”: “Como se fossem raízes / movendo-se devagar / em lençóis incandescentes, // dois corpos se comunicam / – porosidade do fogo, / evaporação do vinho. // Dois corpos, como se fossem / descobrir no chão da pele / a duração da nudez. // (Quando dois corpos se  abraçam, / dois corpos abraçam tudo).”

Mas é na terceira seção de Estante, denominada “Seres”, que essa temperatura estética alcança um nível incandescente, luminoso. O poeta torna-se visionário, bem distante das visões mais imediatas do cotidiano da primeira parte e do erotismo da segunda. Tudo aqui é transfiguração; a linguagem irrompe ambígua, complexa, acionada por um dispositivo mitológico, que faz circular com intensidade simbólica os estratos rítmico, imagético e ideológico desses catorze poemas narrativos (“Toda história começa de repente. / E eu começo a minha”), descritivos (“Eram homens com patas / de depois / que calcavam no tempo os seus futuros”) e dramáticos.

Que seres serão esses? Imaginários ou reais? Vivem em que tempo? Onde? Não sabemos. Só o poeta pode nos responder: “Os nomes desses seres são enquanto. / As horas desses seres são além. / E junto a eles a visão e o canto / são a íris e os seus dentes também. / Suas íris formam rios / – rios que parecem / navegáveis. / E os dentes / retalham a ventania e os desvios / como navalhas no ar, sobreviventes. / Pois assim continuam, infinitos.”

Os poemas de “Seres” exigem leitura e releitura. Poesia atemporal e rara, lembrando os seres imaginários de Borges e a linguagem surrealista de Jorge de Lima. A força desses versos transforma-os num permanente desafio exegético, não fora ainda pela beleza alcançada, a musicalidade, as metáforas e símbolos manipulados com precisão e sortilégio. Aqui, não resta dúvida: o terceiro livro de Estante é pura, alta e impactante poesia. Porque alimentada pelo mito e pela história, congrega num só ritmo o homem e o poema, tornando os seres “tão geminados que é a mesma viagem: / e nela / faz-se futuro-passado / o que deles restou em sim e não: / eles eram seres, eram, serão”.

Adriano Espínola

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