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Artigo de Gerald Thomas

Folha de S. Paulo

Livro de Felipe Fortuna consegue chegar à pedra filosofal

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A 
FOLHA

29/06/2013

“A Mesma Coisa”, de Felipe Fortuna, apesar da insistência do autor, está longe, muito longe de ser uma qualquer “mesma coisa”.

Já na primeira página eu me surpreendo com algo assim:

Eu me repito

mesmo

quando não copio

Eu poderia escrever mil páginas (pra ser mais preciso), dependendo de qual prisma ou antiverso eu quisesse usar, seja via “Ulysses” de Joyce ou de “Galáxias” de Haroldo de Campos ou mesmo via Ezra Pound e seus “Os Cantos”, a respeito desse pequeno trecho, somente desse pequeno trecho acima. Ele vem a ser a longitude e a latitude, enfim, a bússola que nos traz aos tempos de hoje / agora / now/ o presente imediato, com nossas crises de identidade entre ocidentes e orientes, Ásia desloucada e deslocando o eixo de tudo e recomeçando tudo, especialmente a China com a questão do lixo, da reciclagem e da ascensão à classe média e ásias, náuseas, com os pólos derretendo e uma globalização fazendo dos CEOs os Rei Lears que vemos na TV. Não é fácil. E não há antiácido que chegue.

Esse livro de Felipe Fortuna traz o melhor dos dois mundos: a filosofia da duplicação e do eterno retorno, do múltiplo retorno (wagneriano, como Navios Fantasmas ou como o Liebestod amor depois da morte, e vice-versa, ou o amor através da morte, ou a impossibilidade de uma vida por inteiro como um Nietzsche depois de sua crise ao ver o cavalo espancado… Mas também nos faz sentir que, como poeta, sua função é lírica e idílica e suas palavras fluem como uma linda sinfonia e, antes mesmo de mudarmos de página, a lágrima escorre, e sua poesia é pura emoção.

É raro, muito raro nos dias de hoje ou em qualquer dia um livro de poemas nos “pegar pelo pé e pelas mãos” e arrancar a alma suicida que levamos no peito. Suicida sim. Sim, às vezes queremos morrer de tanta beleza ou porque não vemos mesmo mais sentido nessa massificação de tudo, nessa produção em massa de tanto, “onde tudo é tudo e nada é nada”.

E?…. E o quê? Não sei….Apesar das constatações existenciais, Fortuna dá um coice de cavalo no nosso estômago com esse pequeno grande livro. E que coice!

Parece que Moisés está no alto do Monte Sinai conversando diretamente com o Criador (“eu sou igual a um anagrama”). Será que Moisés, como um anagrama, receberia os Dez Mandamentos sendo um anagrama? Sim, provavelmente sim, já que um anagrama é um eufemismo, uma sofisticação, uma redução da essência dessa galáxia de palavras que nos…. o quê? Que nos….babel. Sim, que nos babamos e Babelamos até o desentendimento desde sempre.

A MESMA COISA nos “Babel” um pouco menos já que ele, o Felipe, nos aproxima um pouco mais de quem somos (ou deveríamos ser). Faz sentido?

CENA DE ORIGEM

Sim, aquela mesmo. Aquela escrita faz um pouco mais de 5 mil anos, em aramaico (já que o hebraico não foi arquivado). Fortuna (o nome diz tudo, filho de um dos maiores cartunistas brasileiros ever, especialmente do Pasquim), sabe que essa cena não tem UMA só origem, portanto é a cena da diáspora. Explico mais tarde aqui nesse texto mesmo.

Li esse livro no avião vindo, indo, voltando e em terra. E li de novo e, de fato, acho que ele tem vários autores –no melhor estilo do “Teatro da Crueldade” ou do seu Duplo, de Artaud, que Jorge Luís Borges…(bem, vamos deixar Borges de lado. Mas como? Sim, de lado!)

O Criador aqui é o autor e não Deus, se bem que um é o outro e o outro é um. Pronto! Voltamos a Borges naquele conto, “O Outro”, mas pouco importa. Aqui o Criador quer desesperadamente provar que somos um a cara do outro, um mero anagrama do ouro, uma diferença mínima de cromossomos, de “como somos”, o R da diferença.

É o R de rato. O camundongo do tempo de Poe e o rato, virtude dos mitos da diferença, da diáspora!

Não me pergunte porque somos iguais.

Minha alma gêmea chegou para me ajudar: a mão que estende é uma só, igual a todas”

Felipe Fortuna consegue o que os grandes poetas conseguem com a poesia: chegar à pedra filosofal ou fundamental.

Gilbert Chesterton foi um deles. Samuel Coleridge foi outro. Sim, temos inúmeros.

“A porta se fecha quando entramos” é um território tenebroso que nos deixa gélidos junto a Kafka e Fernando Pessoa. Mas estamos juntos ao Criador então –nesse sentido– diferente e oposto a Kafka e Pessoa, ele não nos joga aos leões e divide suas indecisões, suas amarguras e anagramas conosco, as suas sílabas reverberam conosco e não simplesmente ficam lá como sons jogados como efeitos ou defeitos da poesia concreta ou da música concreta de Cage ou de Stockhausen.

Felipe Fortuna é camaleônico, mas não tão completamente como finge ser o poeta porque o poeta pode ser um fingidor e fingir tão completamente até “apodrecer”.

O manequim imóvel e surpreso (…) apodrece“, mas na verdade não apodrece a poesia que aqui lemos e aqui nos inspira a mais um dia, mais um mês, mais um ano de tantas imitações, de tantos “trompe-yeux” que já não sabemos mais o que é porta e o que importa…mas…se fingimos tão completamente, que diferença faz? Num mundo cada vez mais confuso e asiático e de dar náuseas, numa falsa cultura a essa falta de cultura onde nenhum antiácido resolve, uma coisa é garantida:

“A Mesma Coisa” não é a mesma coisa mesmo porque, virando a página temos mais dois poemas belíssimos: O SUICIDA e CONTRA A POESIA. E esses outros dois capítulos-poemas são justamente essa diáspora à qual me referia antes, que compõe a cena de origem e transforma o livro, como um todo, num livro nômade. Começa com aquela “masterpiece” e termina com um “contramasterpiece”, assim como o Barthes ou a Susan Sontag o definiria.

Ah palavra que me falta (Arnold Schoenberg).

Dizer que é “A Mesma Coisa” impactante é redundante.

Dizer que é ducacete é desvalorizar o livro. Dizer que é genial, simplesmente genial e emocionante é chegar perto da verdade, bem pertinho da verdade.

 

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