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Artigo de Miguel Sanches Neto

GAZETA DO POVO
Caderno G
Segunda-feira, 20 de janeiro de 2003
APETITE PELO BRASIL
Miguel Sanches Neto

A verdadeira atividade crítica é exercida por espíritos desconfiados, que entram no texto sem se entregar a tudo que está dito, buscando contradições com o mesmo empenho com que busca informações iluminadoras sobre a obra. Acaba, por isso, se colocando contra o autor, até nos momentos de maior adesão ao objeto analisado, pois introduz um ponto de vista externo, deslocado, que interfere diretamente nos possíveis da significação. O grande desafio do crítico é não se transformar em polemista, pois a polêmica é uma reação emocional e a crítica se inscreve na categoria mais elevada das ideias.

É como tal que deve ser lida a reunião de ensaios e artigos do poeta Felipe Fortuna – A próxima leitura (Francisco Alves, 2002) -, cujo título é uma defesa da permanente geração de sentidos. Trata-se de coletânea construída intelectualmente – é o poeta analisando questões que o preocupam como partícipe do mundo das letras. Mas ele também reúne material produzido para vários órgãos de comunicação sem perder o estilo mais denso, fundado em leituras abalizadas. Seus textos ora são ensaios ora críticas de rodapé, mas guardam invariavelmente a marca da informação rigorosa e uma ética cavalheiresca.

Apesar de um vasto e cosmopolita universo de referência, a preocupação de Felipe Fortuna é o país, melhor dizendo, é a língua portuguesa. Assim, ele escreve sobre a visão não raro equivocada e preconceituosa que Elisabeth Bishop tinha do Brasil, sem, no entanto, deixar de se solidarizar com a poeta americana, perdoando-a por seu amor a esta latitude, mesmo quando não conseguiu compreender a complexidade de uma pátria que ela reduziu a dimensões quase liliputianas. Até Manuel Bandeira, amigo que lhe presenteara com uma rede e com um poema em sua homenagem, é negado em suas cartas: “Elisabeth Bishop é impiedosa no julgamento que faz do poeta: Bandeira é delicado e musical e tudo mais – nada parece sólido ou realmente ‘criado’ – é tudo pessoal e tendendo para o frívolo. E arremata, triunfante: Um bom poema de [Dylan] Thomas vale mais do que toda a poesia sul-americana que já vi” (p. 340). Fortuna deixa subentendido que o problema não estava na poesia brasileira em si, mas no olhar superficial de Bishop, que comete o que ele considera o maior pecado de um analista: a falta de informação. Pecado do qual ele, como crítico, foge nestes ensaios em que se sente o peso da pesquisa.

Além de Bishop, apenas mais um escritor estrangeiro é analisado – Rilke – mas o que interessa ao crítico é a recepção da obra dele, subitamente apropriada pelos concretistas em seu desejo de inventar ancestrais nobiliárquicos. A próxima leitura revela, antes de mais nada, um apetite pela poesia brasileira, recusando mistificações programáticas e olhares estrangeiros reducionistas.

Um destes olhares é o de Roger Bastide, que viu a poesia de Cruz e Sousa pelo prisma da raça. Em textos exemplares, Felipe Fortuna mostra como o grande artista catarinense era um poeta ariano, fruto antes de sua cultura do que de sua fatalidade étnica, contra a qual ele lutava. Buscar os traços africanos da poesia de Cruz e Sousa, que apenas matinalmente escreveu prosa abolicionista, é não entender o desejo civilizatório que move sua poesia, simbolista e espiritual em sua essência, distante da experiência sensual do corpo e suas vicissitudes.

Cruz e Sousa seria uma vítima do biografismo crítico, que tende a valorizar os elementos da negritude ou o drama do negro, quando o problema central de sua poesia – de extração europeia – é a busca do Ideal, que estava além dos tormentos terrenos.

Naquele momento, não cabia nenhuma afirmação étnica e o local só era aceito quando se equiparava a modelos universais. Mesmo um mulato como Machado de Assis não lutava para impor-se por sua origem, mas por sua capacidade de negar os lugares comuns sobre ela.

José Veríssimo, por ocasião da morte de Machado, escreveu um artigo referindo-se elogiosamente à condição mestiça do ilustre ficcionista, recebendo uma reprimenda de seu amigo Joaquim Nabuco: “esta frase causou-me um arrepio: ‘Mulato, foi de fato um grego da melhor época’. Eu não teria chamado o Machado mulato e penso que nada lhe doeria mais do que esta síntese […]. O Machado para mim era um branco, e creio que por tal se tomava; quando houvesse sangue estranho, isso em nada afetava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só vi nele o grego. O nosso pobre amigo, tão sensível, preferia o esquecimento à glória com a devassa sobre suas origens” (ver A crítica literária no Brasil, de Wilson Martins – Francisco Alves; 2002, p. 401). A glória, para Cruz e Sousa, veio atrelada ao drama de suas origens, quando o artista se sentia pertencer à “aristocracia do espírito”. Ler sua poesia como uma devassa étnica, mesmo que seja para afirmar suas qualidades, é uma atitude extemporânea, pois projetamos valores de agora a posições tomadas em outra situação histórica. Felipe Fortuna presta um grande serviço à poesia brasileira questionando esta recepção de Cruz e Sousa e desvelando as influências, as ideias e os conflitos que o moveram.

Quanto aos poetas do modernismo, ele recupera duas figuras pouco lidas, Cassiano Ricardo e Joaquim Cardozo, fazendo análises minuciosas sobre livros e poemas destes autores legados à segunda divisão. Depois de ler o ensaio sobre o poema “Visão do Último Trem Subindo ao Céu”, de Joaquim Cardozo, é impossível não lhe conceder espaço em nossa moderna tradição lírica.

Mas talvez a contribuição mais relevante de Felipe Fortuna, neste livro, esteja na discussão de poetas contemporâneos, sobre os quais diz verdades impopulares em linguagem pacífica e serena. Embora fale de Carlos Drummond de Andrade, Décio Pignatari e Augusto de Campos, os textos mais importantes tratam de Sebastião Uchoa Leite, cujos palimpsestos poéticos são minuciosamente analisados, e de Frederico Barbosa. Em ambos, ele detecta uma retórica da negação, fruto de uma desconfiança do poder demiúrgico da metáfora e uma busca da rarefação erudita. A negação da metáfora em Sebastião Uchoa Leite é o grande modelo da poesia pós-cabralina e pós-concretista, que tem neste autor um perigoso exemplo, pois “o tormento com a insuficiência da linguagem já foi comunicado a gerações ainda mais novas” (p.53). Entre os que sofreram esta influência está Frederico Barbosa. Ao tratar dele, o crítico lembra que “O poema moderno precisa, definitivamente, livrar-se da vocação para o palimpsesto e preservar-se do perigo da informação, estigmas que vem convertendo o leitor e o crítico em meros decifradores, em vozes da arqueologia universitária” (p.296). Os poemas estariam ganhando a forma e a relevância de notas de pé de página.

Felipe Fortuna não apresenta teses, renunciando ao discurso proselitista, e essa é mais uma qualidade de seu livro, mas no final do ensaio sobre Cassiano Ricardo, depois de acompanhar a unificação mundial que se dá com o advento traumatizante e paralisador da bomba atômica, e de desmontar a máquina lírica do poeta, ele vê uma possibilidade de mudança: “a poesia, que se expressa comumente pela perplexidade e pela impotência […], deixará de inspecionar artefatos atômicos e passará a inspecionar a própria vida” (p.83).

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