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Artigo de Wilson Martins

O GLOBO
Sábado, 2 de setembro de 2000
IMAGENS
Wilson Martins

Os sinos podem dobrar pela civilização da leitura, vítima inevitável do momento crítico em que a era tipográfica, a que estava organicamente ligada, foi substituída pela idade eletrônica, que pôs a imagem instantânea e figurativa em lugar da linearidade dos signos. Felipe Fortuna acredita que a Internet “é um palimpsesto monumental, em que as palavras e imagens podem remeter para outras palavras e imagens, segundo um processo que eliminou a transparência, mas manteve intacta uma ordem de leitura” (“Visibilidade. Ensaios sobre imagens e interferências”. Rio: Record, 2000).

Dizendo-se atraído pelo “discurso da imagem”, Felipe Fortuna parte do oxímoro que, justamente, denuncia a persistência de hábitos ou automatismos mentais. Condenados a desaparecer no bravo novo mundo da eletrônica. De fato, a imagem é o contrário exato do discurso, isto é, o instantâneo imóvel, enquanto o discurso (discursus) implica movimento e modificação progressiva. Seu intuito foi a “tentativa de descobrir o que havia de permanente” nos fatos transitórios, “O mito que se ocultava na noticiai na foto ou na exposição de um acontecimento que se tornou importante porque a impressão assim o quis”.

Acrescento, por minha conta; que, em nossos dias, o que torna importantes os fatos e acontecimentos não é a imprensa escrita; que ele tem em vista, mas a imprensa eletrônica, no mesmo ato que rejeita para o limbo do nada os que decide ignorar. Sabe-se que as eleições políticas são decididas na televisão, segundo critérios que nada têm de político; nem mesmo de racional: a aparência dos candidatos, sua “presença” fotogênica, a voz e suas inflexões, a espontaneidade com que se utilizam da técnica.

Entre as imagens transmitidas pela televisão, Felipe Fortuna refere o suicídio do político nome-americano que, acusado de corrupção, convocou a televisão para assisti-lo, sem que nenhum dos jornalistas se dispusesse a impedi-lo, porque, no caso, o espetáculo sensacional pareceu-lhes mais valioso que uma vida humana, provocando, em seguida, os habituais debates farisaicos sobre a ética da profissão.

Em linguagem de televisão, um homem se matava ao vivo (!). Não é o único exemplo de político impelido ao suicídio pela ferocidade irresponsável da imprensa, falada e escrita, sendo conhecido o caso francês do ministro Pierre Bérégovoy. Na China e, segundo parece, nos países islâmicos, funcionários corruptos e traficantes são, às vezes, sumariamente executados em público, para escarmento dos demais.

No Brasil, segundo Felipe Fortuna, “muitos comentaram que, se o mesmo hábito fosse seguido pelas autoridades econômicas em especial as envolvidas nos numerosos escândalos financeiros – o país pipocaria como em noite de São João. Pode até ser que, dada a situação precária tia Justiça brasileira, nenhum deles tema as grades da prisão (…)”.

A civilização eletrônica é vulnerável na exata medida das suas virtualidades. O descuido de um operador pode paralisar todas as atividades do planeta ou implantar o caos no próprio mundo que ordena com perfeição absoluta, para nada dizer dos criminosos que deliberadamente introduzem no sistema os vírus apropriadamente identificados por uma designação patológica.

Felipe Fortuna lembra o episódio do Y2K, isto é, a catástrofe que todos temiam na passagem eletrônica do século. A profecia não se cumpriu (como tantas outras…), levando os mais cínicos a pensar que o famoso bug do milênio foi apenas uma jogada dos espertalhões capitalistas para vender produtos e serviços.

Há, felizmente, coisas mais amenas na civilização da imagem, dos selos da Cicciolina, loba romana que foi por algum tempo a figura emblemática da política italiana, aos desenhos

comentados por Felipe Fortuna na última parte do volume. Ele aceita, a esse propósito, o postulado da sabedoria das nações, segundo o qual uma imagem vale por mil palavras –

primeiro mandamento e mandamento central da civilização eletrônica. Vale, de fato, com o mesmo potencial de engano e mistificação.

Assim, por exemplo, a TV da União Soviética filmou cenas no Times Square de Nova York para mostrar aos russos que, no regime capitalista, a população vive sob a opressão permanente dos policiais. Em 1936, o Partido Comunista Francês (PCF) produziu um filme de propaganda (La vie est à nous), dirigido, pelo menos em parte, por Jean Renoir e no qual personalidades do Partido figuravam como atores, enquanto estes últimos apareciam como parte do público.

Renoir “precisava” de uma cena em que os “burgueses” saudassem com gestos fascistas a passagem do coronel La Rocque e seus seguidores diante de um palacete suntuoso. Nada mais simples: reuniu os figurantes nos balcões da prefeitura de Montreuil, intercalando a cena, em seguida, no segmento real de um jornal cinematográfico da época. As imagens valiam, realmente, por mil palavras…

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