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As Sombras da Delicadeza (sobre a poesia de Henriqueta Lisboa) [1]

Quando Henriqueta Lisboa publicou seu primeiro livro, Enternecimento (1929), o Modernismo já estava plenamente consolidado. Todas as resistências ao movimento tinham sido galhardamente vencidas ou transformadas em arroubos retóricos de cunho passadista, a exemplo da célebre reação de Monteiro Lobato à pintura de Anita Malfatti e das confusas sessões da Academia, culminando com a saída de Graça Aranha. Macunaíma fora publicado em 1928 e o ano de 1930 marcaria o aparecimento de Alguma poesia, estreia de Carlos Drummond de Andrade, e ainda Poemas, de Murilo Mendes, o decisivo Libertinagem, de Manuel Bandeira e, enfim, o Pássaro cego de Augusto Frederico Schmidt, que continuava no itinerário apontado por seu Navio perdido (1929). [2]

Esteticamente assimilado, o Modernismo ampliava-se com as adesões do romance social de 30 e com o ambiente de relativa liberdade para a criação artística. Justamente em torno de uma perdida hegemonia, com ecos nostálgicos, certa tendência “espiritualista” não tardou a publicar, em meio à vanguarda, uma poesia decididamente preocupada com a tradição das formas poéticas, resgatando-as assim do naufrágio final, e emprestando-lhes a marca neossimbolista. Restaurando os grandes temas poéticos, afastando-se de todo ato prosaico que até então tinha sido a evidência da modernidade, essa reação acabou por cumprir um dos imperativos básicos da poesia religiosa – entendido num dos aspectos de religione, de religação não apenas à tradição teológica cristã, mas igualmente a um conceito transcendente e intemporal de poesia.

Sem estabelecer programas, a poetas atualmente pouco lidos, como Tasso da Silveira, Emílio Moura e Dante Milano, veio juntar-se o nome de Henriqueta Lisboa, formando assim uma verdadeira família espiritual. Com uma poesia de intenção filosofante e intimista, a escritora foi pouco a pouco salientando o vínculo religioso – fenômeno que talvez sofreu influências da específica ambientação em Minas Gerais – e, enfim, embrenhou-se pelos temas da solidão e da morte.

Os livros de Henriqueta Lisboa, em seu conjunto, revelam uma espécie de poesia que, afastada e mesmo isolada de toda questão contemporânea, assume um provincianismo agravado por exercícios anacrônicos e beletristas mal disfarçados de habilidade com o verso. Pois, sendo mesmo forçoso classificar de menor a poesia de Henriqueta Lisboa, tal se deve à sua monocórdica fidelidade a um só ideário, que sintomaticamente jamais evoluiu. É decerto espantoso verificar que poemas crepusculares, como os de Pousada do Ser (1982), em quase nada se diferenciam, por exemplo, dos mais felizes versos de Prisioneira da noite (1941). Longe de confirmar uma coerência, trata-se de um sinal de implacável conformidade. Se quase sessenta anos de constante presença serviram para marcar uma exclusiva dedicação literária, certamente não compensaram – e, pelo contrário, só agravaram – a unidade poética de quem se esforçou em dizer o indizível. Se existe um objetivo em sua poesia, tão caracterizada pelos temas da incomunicabilidade do ser, ele é – mesmo que difusamente – a questão do mistério e da salvação religiosa. Arcaizante, sua poesia apresenta momentos constrangedores, seja em imagens surradíssimas,

dedos do luar partiram-se os fios do pensamento

(“Prisioneira da Noite”),

seja em concepções lamentavelmente infantis:

Por que de tantas estrelas no céu ao menos uma não se desprende

para vir pousar no meu ombro como sinal de esperança?

(“Prisioneira da Noite”)

O uso simbolista das maiúsculas (Noite, Mar, Virgindade, Pureza, Verbo, Eleito, Amante e tantos outros), se por vezes se adequam à configuração religiosa, em geral se mostram ineficazes na sua grandeza. A grafia em desuso da palavra “cousa” e a simpatia pela ideia de musa,

a minha musa ama precisamente 

o que não existe neste lugar 

(“Singular”)

são afetações que atentam frontalmente contra o gosto poético. Imagens repetidas, como a do anjo da paz, e poemas elogiosos a figuras históricas, culminando com um “Elogio Para Santos Dumont”,

Novo Ícaro, tu te aproximaste 

demasiado do sol. E o sol vingou-se 

crestando tuas asas de cera

são peças dignas dos almanaques médicos.

Por algum tempo, a crítica de poesia acostumou- se a apontar em sua obra características “femininas” como a da delicadeza, da singeleza e – ainda mais estranhamente – da musicalidade, ao mesmo tempo que forçava comparações com outras poetisas, tais como Cecília Meireles, expoente do “espiritualismo”, e Gabriela Mistral. Se falta à maioria dessas grotescas interpretações o discernimento necessário para avaliar a sua poesia até mesmo entre a de seus contemporâneos, imagine-se o desastroso paralelo com a de um R.M.Rilke.

A poesia menor traz consigo a marca de um renitente tradicionalismo que investe em imagens poéticas como as que seguem:

Na sua faina de artista 

o sol com pincéis de espiga 

é o próprio dom do amarelo. 

(“Poeminha do Amarelo”)

Ou ainda, num poema como “Beija-Flor”, nomear o pequeno animal de “dramazinho melífluo”.

Os seus dois livros mais bem acabados são justamente aqueles em que a escritora mais se afasta da meditação religiosa e ousa outras conexões para a realização de sua poesia: Flor da Morte (1949) e Reverberações (1976). O primeiro deles certamente foi marcado pela dolorosa experiência da morte de Mário de Andrade, com quem Henriqueta Lisboa mantinha diversas afinidades. A soturna meditação sobre a morte confere uma unidade absoluta ao livro, atingindo em poemas como “Silêncio da Morte”

Fera 

de olhos oblíquos espreitando 

a ampulheta

ou em “O Mistério”

Tu que estás morto 

esgotaste o mistério

dimensões inusitadas, que revigoram as suas próprias atitudes filosóficas. Drummond, em Passeios na ilha (l952), classificou acertadamente os poemas de sua conterrânea como um “tratado poético da morte”. Aqui, sim, caberia um paralelo com outra poetisa, Hilda Hilst, que herdou a vocação meditativa sobre o tema,

em busca do intangente inefável. 

(“Esta é a Graça”)

Reverberações são, como a poetisa escreveu, “a interpretação – ou sugestão dos substantivos que mais me impressionaram”. De fato, o livro é composto por dezenas de pequenos poemas a cujos títulos, alinhados pela ordem alfabética, seguem-se definições “poéticas”. Escritas em quatro versos, lembram menos as quadras populares do que, pela brevidade, os haicais. São experiências formais em que talvez subsista alguma prática notavelmente acadêmica, mas que permitem bons momentos, a exemplo de “Amor”

Amortecer 

pelo infinito 

para a duração 

da carícia.

E ainda “Remorso”:

Morrer por causa 

de haver feito 

o que mata 

de não fazer.

A reorganização dos espaços poéticos, proposta por sua poesia – que apenas acontecerá, ao menos como programa, com a Geração de 45 – é uma resposta à dispersão inicial instaurada pelo Modernismo. Na análise por vezes enternecida que muitos fizeram acerca de sua poesia, apontaram qualidades singelas como as da suavidade e da delicadeza. Tudo isso, mesmo que exista substancialmente em seus versos, apenas serve para caracterizar uma poesia que, posicionando-se com um compromisso ultrapassado, acabou presa no círculo do seu próprio silêncio.

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[1] Jornal do Brasil, 2.3.1986

[2] O estudo clássico sobre o período ainda é o de Mário de Andrade, “A Poesia em 1930”, in Aspectos da literatura brasileira (São Paulo: Martins, 1974, 5a. edição), p.27-45.

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