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Colheita da Poesia*

No final dos anos 90, visitei o poeta, tradutor e crítico Michael Hamburger (1924-2007) em sua casa em Middleton, recanto inglês onde se instalara ao deixar Londres. Ele era o típico produto oriundo da Europa em guerra: judeu alemão nascido em Berlim que fugira com a família quando os nazistas tomaram o poder. Enraizando-se ainda criança no Reino Unido, tornou-se um dos intelectuais mais estimados do país, embora seus poemas tenham lutado por um reconhecimento que o crítico literário e o tradutor de Hölderlin e de Paul Celan conquistaram prontamente. Na casa e no corpo, tudo parecia um pouco desarrumado: a biblioteca misturava livros em alemão e em inglês com desmazelo, o cabelo nunca se assentava por completo. Eu havia acabado de ler String of Beginnings (1991), edição revista da autobiografia que lançara em 1973, na qual ele conta, com melancolia, o seu transplante para outro país e outra língua, e como, por volta dos quinze anos, “eu pude começar o meu longo aprendizado como poeta britânico.”

Inevitavelmente, conversamos sobre The Truth of Poetry, sua excepcional análise dos cem anos de poesia ocidental contidos na moldura da modernidade, agora traduzida no Brasil.1 Mencionei a surpresa de encontrar as páginas dedicadas a Carlos Drummond de Andrade – uma das pouquíssimas referências a um poeta brasileiro em estudos do gênero –, especialmente porque escritas quando ele ainda se encontrava vivo. Publicado originalmente em 1969, o livro de Michael Hamburger se detém num poema como “A Bomba”, que consta de Lição de Coisas (1962), o mesmo no qual se lêem poemas como “Amar-Amaro” e “Isso é Aquilo”, de notável experimentalismo. Mas a variedade do poeta brasileiro não confunde o crítico, que aponta a “obsessão com dúvidas” sobre a realidade e as “incertezas ontológicas” como características de Carlos Drummond de Andrade, as quais jamais o conduzem à antipoesia ou ameaçam a relevância social da sua poesia. Na comparação com poetas internacionais, o crítico estabelece uma atraente fraternidade entre o poeta brasileiro e o italiano Franco Fortini, que também soubera dosar a arte hermética com a preocupação política e social. Espanta que a acuidade de Michael Hamburger seja tão pertinente com o que se lê em A Rosa do Povo (1945) e Claro Enigma (1951), dois livros de faturas diferentes e até mesmo conflitantes.

No ponto em que conversávamos sobre poesia e guerra (e, nas entrelinhas, sobre o intraduzível tema do holocausto), já fora convidado para conhecer o jardim que o crítico tratava com marcante atenção. Aos olhos de quem se acostumara à disciplina e mesmo à ornamentação do jardim inglês, aquele me parecia bem mais um matagal, uma seqüência tumultuada de arbustos, plantas e flores esparramadas à frente do visitante, como se não houvesse um caminho. Orgulhoso dono de um éden, Michael Hamburger mostrava espécies de maçãs, dizia ele, difíceis de encontrar. Subitamente percebi que assim se dera não apenas o preparo daquele terreno, mas a disposição dos assuntos e dos poetas discutidos em The Truth of Poetry. A minha frustração de não encontrar no livro qualquer menção a Elizabeth Bishop, Seamus Heaney, Vasko Popa, Wislawa Szymborska, Vicente Huidobro, Jorge Luis Borges era afinal compensada não apenas pela oferta de outro poeta de língua portuguesa, Fernando Pessoa, mas pela presença de análises inegavelmente fecundas.

Por exemplo, no caso do poeta português, uma antecipação do existencialismo, do nouveau roman e mesmo do teatro do absurdo de Eugène Ionesco, a partir de uma nova concepção do poeta tal como indica o poema “Tabacaria”:

O dominó que vesti era errado.

Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.

Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Como anuncia o subtítulo original – “tensões na poesia moderna desde Baudelaire até os anos 60” –, cada capítulo de The Truth of Poetry se propõe ao longo comentário de aspectos como “identidades perdidas” e “múltiplas personalidades”. Por alguma desconhecida motivação editorial, trocou-se recentemente “poesia moderna” por “poesia modernista”; e deixou-se de registrar a marca final do tempo, como se a poesia modernista subsistisse até hoje. Essa troca modifica essencialmente o objetivo primordial de Michael Hamburger, que era, como registra no prefácio, responder à seguinte pergunta: “o que torna moderna a ‘poesia moderna’”? A edição brasileira, infelizmente, aceita a troca, apesar de não imprimir o subtítulo na capa.

Resta ao leitor desbravar o viçoso e exuberante solo que o crítico organizou, a seu modo, com espécimes tão diferentes em aparência: no caso de Charles Baudelaire, a observação de que o poeta francês atribuía significado social, ético e religioso a assuntos que eram de fato estéticos. A preciosa anotação de que “a própria linguagem garante que nenhuma linguagem será totalmente ‘desumanizada’, não importando se o poeta tenta projetar a pura interioridade exteriormente.” (Nesse trecho, a tradução de Alípio Correia de Franca Neto, em geral correta e atenciosa, não consegue expressar a idéia de Michael Hamburger). Em seguida, a afirmação de que Tristan Corbière foi de fato um poeta moderno (mas não modernista) por causa do seu dilema de identidade e da dicção inovadora do seu verso. É o que se lê em “Épitaphe”, na tradução de Augusto de Campos:

Não foi alguém, nem foi ninguém.

Seu natural era o ar bem

Posto, em pose para a posteridade;

Cínico, na maior ingenuidade;

E mais: há uma importante discussão sobre as simpatias expressadas em relação a movimentos políticos autoritários de direita por poetas como William B. Yeats, Ezra Pound e Wallace Stevens, entre outros. No contexto do final da II Grande Guerra, Michael Hamburger estuda as formas de antipoesia, entre as quais a da “poesia impura”, tal como praticada tanto por Bertolt Brecht quanto por Pablo Neruda – e, a seguir, por uma linhagem de poetas inflamados pela política. Pode-se reclamar da escassa atenção do crítico à poesia visual e a muitos experimentos conceituais. Mas A Verdade da Poesia é campo tão fértil na apresentação de poetas e, sobretudo, no exame da interação entre poetas e poemas, que o livro pode ser a melhor opção quando não se estiver lendo poesia a passeio.

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* Jornal do Brasil, caderno Idéias & Livros, 7 de junho de 2008.

1 Michael Hamburger, A Verdade da Poesia (São Paulo: Cosacnaify, 2007), tradução de Alípio Correia de Franca Neto.

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