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Entrevista a Ricardo Vieira Lima

Tribuna da Imprensa
Suplemento Tribuna BIS
Terça-feira, 23 de fevereiro de 1999
ROTEIRO LÍRICO DE SANTA TERESA
Entrevista a Ricardo Vieira Lima

Tradicional reduto carioca de artistas e intelectuais, Santa Teresa já abrigou nomes ilustres como Manuel Bandeira, Cícero Dias, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e Nise da Silveira. Em antológica crônica a respeito do bairro, Rubem Braga chegou a afirmar que “Santa Teresa é um dos lugares do Rio que menos existe”. O velho Braga estava certo: que outro carioca une, com perfeição, topografia e arquitetura? Lugar único na geografia da cidade, Santa Teresa não possui agência de correios, postos de gasolina, bancos ou sinais de trânsito. Seus moradores ainda viajam de bonde, tomam elevador para alcançar o hall de entrada de um edifício e, em muitos casos, moram mesmo no subsolo, com direito a uma vista ampla e multiforme.

Contudo, faltava um livro que registrasse a geografia local, relacionando-a com o peculiar cotidiano do bairro. Em Curvas, ladeiras – bairro de Santa Teresa (editora Topbooks), o poeta e tradutor carioca Felipe Fortuna, 35 anos, preenche essa lacuna. Ex-morador de Santa Teresa e atual secretário da embaixada brasileira em Caracas, Venezuela, Fortuna afastou-se do bairro em que passou toda sua infância e adolescência para ingressar na carreira diplomática. Servia em Londres, quando iniciou o seu “guia pessoal”, como ele mesmo gosta de definir. Permeado por um certo lirismo nostálgico, o livro é também uma espécie de memorial da infância do autor. O volume é enriquecido, ainda, por 30 fotos do bairro, tiradas recentemente pelo próprio Felipe.

E entrevista exclusiva ao Tribuna BIS, concedida por e-mail diretamente de Caracas, Fortuna falou sobre seu guia e sobre as descobertas curiosas que fez, durante a feitura do mesmo

Tribuna BIS – O que o levou a escrever um guia pessoal do bairro de Santa Teresa? Contribuiu o fato de você não morar no Brasil?

FELIPE FORTUNA – Escrevi esse livro ainda em Londres, em 1994. De fato, angustiou-me um pouco deixar o país, mas sei que o principal motivo para retornar ao bairro onde passei toda a minha infância foi a morte do meu pai, o humorista Fortuna, poucos meses antes de eu começar a escrever o livro. Assim, o turismo desse guia é do tipo sentimental, uma busca da simbologia essencial do lugar, movido por uma necessidade de reencontro.

A possibilidade de protestar, face ao abandono em que o famoso bairro se encontra, influiu de alguma forma?

Não posso falar, atualmente, de abandono ou de decadência do bairro. Há muitas iniciativas para restaurar a vocação boêmia e noturna, como a reforma do Largo das Neves, a Abertura do Parque das Ruínas, e a volta dos bondes ao Silvestre, a meu ver, elemento importante para que o carioca possa conhecer Santa Teresa do seu início, no centro do Rio de Janeiro, ao fim, acima do Cosme Velho. Obviamente, alguns casarões se perderam, outros estão praticamente irrecuperáveis. É imprescindível que uma política e patrimônio público atue em Santa Teresa.

Houve algum trabalho de pesquisa para a elaboração do livro?

Sou um obcecado leitor da história do Rio de Janeiro. Tenho em minha biblioteca duas ou três estantes unicamente dedicadas ao assunto. Nossa cidade, felizmente, foi romanceada, teatralizada, comentada à exaustão, nas suas grandezas e misérias. Mas faltava um estudo ou um ensaio sobre o bairro de Santa Teresa, tão passional quanto o que se pode escrever, penso eu, sobre Copacabana. Houve muita leitura prévia à experiência de escrever o livro, feita ao longo do tempo. Li até mesmo legislações e estudos de geografia e topografia. Muitas vezes, como se lê no meu livro, corrijo algumas informações simplesmente porque conheço bem o cotidiano do bairro. Outras vezes, escolho uma informação importante – por exemplo, a de a rua Almirante Alexandrino, principal rua do bairro, foi originalmente o caminho das águas que desciam ao centro da cidade – e saio a passear com a ideia de que cada um dos moradores refaz, todos os dias, o roteiro daquelas águas que todos os cariocas bebiam…

Que descobertas interessantes ou curiosas você fez, durante a pesquisa?

As descobertas mais curiosas relacionam-se ao abastecimento de água. Até Tiradentes, como descobri, escreveu um ofício no qual pedia atenção para o problema, e mencionava Santa Teresa como o melhor manancial da cidade. O aparecimento dos bonés também está envolvido em histórias que despertam grande interesse, como demonstro no livro. Descobri também que uma categoria de pessoas, em geral artistas, que sentiam remorso por não haver morado em Santa Teresa, como foi o caso de Rubem Braga. Uma vez escrito o livro, foram aparecendo novidades: um livro de Elvia Bezerra, A trinca do Curvelo, trata da vida de Manuel Bandeira, Ribeiro Couto e Nise da Silveira, quando os três moravam na rua do Curvelo, atual Dias de Barros. Esse livro também foi editado pela Topbooks. Aliás, o seu editor, José Mario Pereira, morava numa bela casa da rua Aarão Reis, em companhia de sua mulher Christine Ajuz, que gentilmente escreveu a orelha do meu livro. Nisso eu posso dizer: que livro bairrista.

Que comparação faria entre a Santa Teresa da sua infância e formação e a atual? Ainda moraria lá, se pudesse?

Como tentei demonstrar no livro, o lugar da infância é muitas vezes um lugar mítico ou, como diz o filósofo Cioran, um mundo primitivo onde tudo é possível e nada é atualizado. Ali passei anos felizes da infância e, mais tarde, o começo de minha vida adulta, com a formação de uma biblioteca e a rotina de um morador que frequentemente ia de bonde para a faculdade ou para a cidade. Sempre que penso no Rio de Janeiro, minha referência básica é Santa Teresa. Outros podem pensar em praia, eu penso em montanha. Quanto à segunda pergunta, confesso que voltaria a morar no bairro algum dia, satisfeito de reencontrar a minha paisagem, como aquele diplomata aposentado do último romance de Machado de Assis.

Você se fixou principalmente no lugar, não relacionou o bairro com antigos ou novos moradores ilustres. Por que essa preferência quase obstinada pelo aspecto geográfico?

Como expliquei, minha geografia é toda sentimental. Tenho a convicção de que o lugar é de grande importância na formação do escritor, do artista em geral. Penso em Guimarães Rosa e o sertão mineiro, em James Joyce e Dublin, em Balzac e Paris, em Dickens e Londres. Ou seja, o lugar exerce uma influência poderosa, muito mais do que os moradores ilustres que o habitam. Minha preocupação foi buscar e recuperar a identidade que eu mantenho com o bairro. Quando comecei a pensar nesse guia, percebi a importância que tiveram, para mim, as ladeiras, as curvas, a altura do bairro em relação ao mar, a vida rotineira que me parece diferente por completo da que outros cariocas experimentaram.

Pretende escrever outros guias? Quem sabe, sobre os países que vem conhecendo…

Creio que não escreverei outro guia, pelo menos da forma como o de Santa Teresa precisou ser escrito. Mas em meus livros de poesia é possível encontrar poemas sobre lugares como Jacarta, Cidade do México ou Londres, que de algum modo revelam algo de importante para mim. De fato, as cidades me sensibilizam e, quando menos espero, trago memórias às vezes nítidas, outras um tanto vagas, de cafés, ruas e até mesmo da pintura das casas.

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