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Entrevista acerca do livro de John Milton

EM SEU PREFÁCIO, VOCÊ AFIRMA QUE AREOPAGÍTICA EM CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS E PESSOAIS PRECISAS E, OBVIAMENTE, MARCADA POR ELAS. AO TRANSPOR A DISCUSSÃO SOBRE LIBERDADE E CENSURA PARA NOSSOS DIAS, DE QUE MODO ESTAS MARCAS SE FAZEM SENTIR?

Areopagítica pode ser lido como um livro-denúncia, no sentido em que tanto o artigo de Émile Zola sobre o caso Dreyfus, quanto o Arquipélago Gulag, de Soljenítsin, denunciam o absurdo e a aberração dos atentados contra a liberdade humana. No caso do panfleto de John Milton, havia uma luta parlamentar do seu grupo, os puritanos, contra as demais seitas – em especial, a dos presbiterianos. Além disso, ele havia defendido o direito ao divórcio de maneira contundente e original, ao afirmar que a incompatibilidade de temperamentos, e não apenas os delitos de natureza carnal, poderiam levar à separação definitiva de um casal. Nesse sentido, Areopagítica é o manifesto de uma consciência que se viu agredida ao defender princípios que representavam, sim, tendências partidárias. Mas, em vez de surgir o debate de idéias, Milton percebeu que tentavam instaurar a censura prévia, a eliminação de livros. Ficou revoltado. Atualmente, persistem as inúmeras maneiras de evitar que alguns temas sejam discutidos no plano das idéias. É mais fácil explodir uma bomba numa clínica em que são realizados abortos do que entender as razões profundas que levam uma pessoa a tomar uma decisão que afeta o seu próprio corpo.

COMO SE DÁ A LEITURA CONTEMPORÂNEA DA AMBIGUIDADE DE MILTON, QUE CONDENOU A CENSURA PRÉVIA, MAS ADMITIU OUTRAS FORMAS DE RESTRIÇÃO?

Como político e puritano que foi, John Milton estava convencido de que a censura era um instrumento da Inquisição católica e, por ser católica, contrário ao pensamento e os modos da Inglaterra protestante. Como homem religioso, tinha consciência de que o bem e o mal são inseparáveis e, portanto, que qualquer tentativa de censurar uma daqueles dimensões seria não só absurda, como inútil. Como polemista, ele pregava a exposição de todas as idéias, único modo de combatê-las, se necessário. A censura apenas provocaria a ignorância das ideias, não o seu debate. Acreditava que nenhuma pessoa se tornaria mais virtuosa pela coerção externa, o que seria negar o aspecto racional da escolha humana. Dito isso, eu de fato saliento que outros panfletários da época, como Richard Overton, foram bem mais radicais na sua proposta de eliminar toda e qualquer forma de censura. Alguns intérpretes contemporâneos, influenciados sobretudo pelo conceito de poder em Michel Foucault, afirmam que John Milton não era de fato um libertário, mas sim o representante de uma nova subjetividade que naquele instante se impunha.

MILTON PROPÕE O ESTABELECIMENTO DE PADRÕES REGULADORES, EM VEZ DE UMA SIMPLES CENSURA. NÃO SERIA POSSÍVEL, A PARTIR DAÍ, FAZER UMA ANALOGIA COM OS ATUAIS DEBATES SOBRE A LIBERDADE, POR EXEMPLO, NA INTERNET?

Veja bem: John Milton jamais acreditou na eficácia da censura. Com sua oratória fascinante, citou exemplos da Antiguidade e da Bíblia para dar força à sua tese. Sutilmente, também demonstrou de que modo o ato de censurar é, enfim, uma das inúmeras modalidades de um grupo social exercer o poder a partir de critérios os mais arbitrários e relativos. De fato, como se percebe atualmente, o mesmo filme pode ser liberado para pessoas a partir dos 18 anos em um país, 16 em outro, talvez 14 e 12, ou então pode simplesmente apresentar a sugestão de parental guidance, transferindo para os pais a responsabilidade de permitir o acesso ao filme. Nesse sentido, a Internet representa a maior revolução no que diz respeito à difusão de informações, a maior demonstração de como os textos e imagens podem fugir ao controle, estatal ou não. Como também lembro no prefácio à Areopagítica, todas as formas de controle já imaginadas para a Internet têm-se demonstrado inúteis ou então tecnologicamente inviáveis. Para mim, o ideal a que John Milton se referia foi finalmente realizado 350 anos depois do seu discurso no Parlamento inglês.

MILTON PROVA, COM EXCELENTES ARGUMENTOS, QUE TODA CENSURA É SIMPLESMENTE INÚTIL. VOCÊ ACHA QUE ESTÁ AÍ A GRANDE VIRTUDE DA AREOPAGÍTICA?

Sim, a demonstração feita por John Milton de que toda censura é inútil constitui um dos momentos altos do livro. O escritor arrebata e emociona ao enumerar os exemplos históricos que comprovam a sua tese. Mas não deve ser esquecido o retrato implacável, a ironia penetrante que John Milton fez dos pobres censores, obrigados a se debruçarem sobre livros que não lhes interessam e que não entendem. Acredito que todos os jornalistas ou intelectuais que sofreram censura, numa época em que os censores se sentavam na mesma redação, ficaram condoídos com a falta de preparo e com o baixo nível cultural daqueles pobres funcionários. John Milton já previa isso na Areopagítica. E também mencionava a necessidade que um país tinha de manter uma boa imagem no exterior, entre outros meios, pela defesa da total liberdade de ideias. Ele cita uma visita que fez a Galileu, preso na Itália, e de que modo, na época, os italianos invejavam a liberdade de idéias vigente na Inglaterra. E Milton afirma que cabia ao Parlamento defender a liberdade, valor que um país não deveria perder.

SE O BEM E O MAL É UMA QUESTÃO DE ESCOLHA A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS DIVERSAS, PODERÍAMOS DIZER QUE MILTON REMETE A QUESTÃO DA LIBERDADE PARA UMA DIMENSÃO ÉTICA.

Acredito que sim, e percebo na ética da liberdade de John Milton um sentido de responsabilidade e de escolha que só volta a ser discutido, com a mesma intensidade e eloqüência, pela filosofia sartriana. E sabe por quê? Porque, assim como fez Jean-Paul Sartre, John Milton conseguiu trazer a discussão sobre a liberdade para o plano das ações cotidianas, demonstrando a sua natureza irredutivelmente pessoal e sua dimensão social, atribuindo-lhe valores permanentes e valores contingentes, a liberdade “em situação”. John Milton demonstra, enfim, de que modo a existência da liberdade afeta os nossos atos mais singulares e como, ao mesmo tempo, pode constituir o destino da sociedade na qual devemos ser responsáveis.

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