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MILTON, TRÊS SÉCULOS DEPOIS

Importante lançamento da Topbooks, editora que vem justificando seu nome, a Areopagítica é o mítico panfleto — raramente lido — com o qual John Milton (contemporâneo de Shakespeare, numa época em que nem Shakespeare sabia que era Shakespeare) enfrentava os donos do poder, que impunham, ah, é?, restrições ao direito de expressão. Na época as “restrições” eram curtas e grossas: livros simplesmente deviam ser queimados. E, quase sempre, o fogo, ou o laço, passava raspando pelo autor.

Esta edição da Areopagítica está feita com carinhoso apuro. O leitor pode atravessá-la sem susto e com prazer. A tradução, de Raul de Sá Barbosa, conservou toda a dignidade e, ai!, altaneria do original, apenas, aqui e ali, clarificando a linguagem naquilo que poderia ser tropeço para o leitor de hoje. Aproximações culturais. Elegâncias.

As notas de pé de página (no fim do livro), também de RSB, vão fundo, bem esclarecedoras, não excessivas. E o prefácio do coleguinha Felipe Fortuna, diplomata, crítico e poeta, não deixa pedra sobre pedra, ou melhor, coloca pedra sobre pedra prum belo pórtico de entrada na obra. Encerro aqui minha participação nesta orelha e neste livro porque, depois do que eu disse sobre o que eles disseram e fizeram, nada mais tenho a dizer. Mas por que não uma antiorelha?

O libelo de Milton foi motivado por razões obviamente freudianas a mulher o abandonou e ele se transformou em campeão do divórcio (para os que pensam que o divórcio é invenção moderna; já estava no Código de Hamurabi), e logo da liberdade de expressão. Também vou ser pessoal, para mostrar a suave opressão em meu tempo:

Menino ainda trabalhei numa revista chamada O Cruzeiro, tiragem semanal de 750.000 exemplares. Em sala contígua, trabalhava um jovem de pele clara e boa educação, de nome inglês — Winter. Era o censor. Tempo do déspota Getúlio Vargas, hoje tremendo progressista. Censor presente ou não, nada me (nos) impediu de criticas a GêGê (apelido de Getúlio). Uma frase fez especial sucesso, negativo, nos arraiais do poder: “Getúlio Vargas é maior do que Vargas Vila. É um Vargas Vilão” (que leviandade, Millôr!). Vargas Vila era um escritor mexicano muito popular, na época. Reagindo a esse tipo de crítica (minha e de muitos outros jornalistas), Getúlio suspendeu a censura. Isto é, a prévia. Os editores passaram a ser responsáveis pelo que editassem e, se desagradassem ao poder, tinham suspensos imediatamente os subsídios à compra de papel. Não há patrão que resista.

Em 58 o liberal Juscelino Kubitschek mandou suspender meu programa de televisão, Lições de um ignorante, devido a uma “critica” feita à sua senhora, a primeira-dama: “Dona Sarah Kubitschek voltou ontem ao Brasil, depois de seis meses na Europa, e foi condecorada com a ordem do mérito do trabalho (risos)”. O programa nunca mais voltou ao ar.

Ainda na O Cruzeiro, em 63, escrevi doze páginas em cores com o título A verdadeira história do Paraíso. Carolas dirigentes da revista me atiraram à Inquisição. A coisa foi tão iníqua que se criou um verdadeiro caso religioso. Representantes oficiais de quase toda a imprensa (coisa que não poderia se repetir nos dias de hoje) organizaram para mim um banquete de desagravo, contra a maior revista brasileira!

Um ano depois, 1964, ignorando, porque ignorante, os ditames da Revolução, publiquei a revista Pif-Paf. Durou quatro meses. Fechada, com alguma violência, pela polícia do governo Lacerda. Em 65 estreávamos, com Flávio Rangel, Nara, Vianinha, Autran, o espetáculo Liberdade Liberdade, sempre perseguido, e ocasionalmente suspenso, durante os quatro ou cinco anos em que correu o país. Em 68 iniciamos a colaboração no semanário Pasquim, cuja história foi uma perseguição só, de 1969 até 1975, com a prisão de muitos, e interrogatório constante dos principais colaboradores.

Em 1982, a revista Veja, cuja fase mais reprimida pela censura começou com charge minha – “Nada Consta!” -, se voltaria por sua vez contra mim, impedindo-me de continuar a escrever sobre Brizola, com isso obrigando-me a abandonar a revista. De 85 a 92, fui processado pelo general Newton Cruz, pelo brigadeiro Burnier, pela Polícia Militar de São Paulo. Mas não chorem por mim, argentinos; chorem pelos que foram mais agredidos, presos, mortos. Pois eu, durante todos esses anos, me diverti mais do que os repressores.

Mas essa biografia heroica é apenas para dizer a John Milton, onde quer que esteja, que não adiantou nada, ou adiantou muito pouco. E lhe oferecer, e a incautos leitores de orelhas: de livros, algumas reflexões a bom mercado:

1. Só existe um modo de ser livre: ser o opressor.

2. O escravo quase sempre é colaborador de sua escravidão.

3. A Constituição, que institui que todo homem tem direito à liberdade, não conhece o homem padrão. Ele tem que ser obrigado à liberdade.

4. A liberdade absoluta só existe em momentos-limite, quando não se tem mais nada a perder.

5. A satisfação de nosso ego (liberdade) só é alcançada em detrimento de algum outro (ou de muitos outros) egos. Portanto a liberdade – mesmo utópica – só poderá ser a média da satisfação de todos os egos. Uma insatisfação. Uma mediocridade.

6. Deve-se exigir toda liberdade dos que estão acima. E ser leniente na exigência de contrapartida dos que estão abaixo. Mas o contrário é mais factível.

7. O carcereiro não pode vigiar o prisioneiro o tempo todo. O encarcerado pode fugir a qualquer descuido. Donde o prisioneiro ser (filosoficamente) mais livre do que o carcereiro.

8. As prisões mais sujas, todos sabem, são as mais livres.

9. Ninguém pode nos dar liberdade. Mas qualquer um pode tirar, a começar pelos pais, trazendo-nos ao mundo em condições inadequadas.

10. Com liberdade total o mais forte domina o mais fraco em nome de sua liberdade, o mais inteligente espezinha o mais ignorante em nome de sua inteligência, o mais belo seduz mais em detrimento do fisicamente destituído. Franklin, ao fazer o lema da revolução francesa, Liberdade, Igualdade e Fraternidade, usou o elemento conciliador e humanístico Fraternidade para sugerir um equilíbrio impossível no paradoxo Liberdade x Igualdade.

MILLÔR FERNANDES

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