facebook

O Moderno Paradoxo (sobre a poesia de Manuel Bandeira) [1]

1. Numa de minhas empoeiradas passagens pelas salas da Biblioteca Nacional, resgatei todo um artigo das páginas de um falecido jornal em que escreveram: “É cousa muito sabida a influência que sobre as letras brasileiras exercem as francesas. Toda escola nova que aparece à beira do Sena logo aqui acha os seus entusiastas, os seus imitadores, ou, na melhor hipótese, os seus adaptadores. Causa até estranheza que não tenham estourado por cá os futuristas… A nossa literatura é apenas um reflexo.” Tratava-se de um artigo publicado em O Imparcial, em 25 de dezembro de 1912. Seu autor, um certo Manoel Bandeira. A letra O, erroneamente impressa em seu nome, mal indicava o poeta que teria tantos escrúpulos em não macaquear a sintaxe lusíada. Sob o título de “Uma Questão de Métrica”, o poeta, que só lançaria seu primeiro livro cinco anos mais tarde, demonstra uma enorme preocupação com as noções de versificação e um grande conhecimento de causa. Analisando com alguma erudição exemplos de alexandrinos escritos por Corneille, Victor Hugo e outros, ao lado dos brasileiros Olavo Bilac e Alberto de Oliveira, Manuel Bandeira acabou escrevendo um pequeno ensaio sobre a técnica dos octossílabos. A referência sobre esse texto fora fornecida pelo próprio autor em Itinerário de Pasárgada (1954). Já o texto foi finalmente publicado em 1958, na edição Aguilar da Poesia e prosa. Em muitas ocasiões, Manuel Bandeira manifestou má vontade em reimprimir em livro os seus textos avulsos, embora deixasse indicações minuciosas sobre o mapa da mina; preferia mantê-los no esquecimento, “onde espero que para sempre durmam, ao abrigo de um possível póstero violador de sepulturas.” [2]

O trecho de “Uma Questão de Métrica”, contudo, é um excelente ponto de partida para a compreensão de certos aspectos de sua poética. Nele, o poeta denuncia a então incorrigível vocação de nossa literatura em espelhar a literatura francesa; por outro lado, denota uma razoável atualidade ao estranhar que a escola de Marinetti ainda não tivesse eclodido no Brasil – o que ocorreria, realmente, logo depois, com o desembarque de Oswald de Andrade da Europa. Trata-se, portanto, de uma lúcida constatação. Mas o que fazer quando, nesse mesmo texto, Manuel Bandeira escreve sem qualquer constrangimento: “Os franceses fizeram do seu octossílabo um instrumento de rara flexibilidade. Por que não lhes seguimos o exemplo?”

A confusa apreciação teórica de Manuel Bandeira configura em sua obra uma característica evidente: o respeito à tradição. O poeta que escreveu “Estou farto do lirismo comedido” é o mesmo que cultuou as formas mais clássicas do verso, como as do soneto e do rondó, após os tremores modernistas, e que no seu livro esteticamente mais engajado, Libertinagem (1930), escreveu dois poemas em francês. Mas nem sempre lhe agradou tudo o que escreveu modernamente: assim, não deu importância alguma às suas famosas “traduções para o moderno”, considerando-as piadas em seu sentido mais pejorativo. [3] De igual maneira, o ainda mais famoso poema “Os Sapos”, que provavelmente satiriza o Parnasianismo, é reduzido a uma simples “vontade de aproveitar poeticamente um achado folclórico – o bate-boca da saparia”, conforme declarou a Paulo Mendes Campos. [4] Porque toda modernidade de Manuel Bandeira deve ser estudada evitando-se sempre o perigo das fáceis armadilhas: o poeta sempre foi fiel à ideia de uma certa nobreza poética. A experiência do verso livre em sua poesia nada mais era do que a prática experiente de quem conhecia a fundo as regras mais exigentes de métrica, e que ao se definir poeticamente em 1930, teve o cuidado de seccionar o título Libertinagem em três linhas, “para de certo modo disfarçar o que pudesse parecer cínico no título”. [5]

Mas nem tudo pôde disfarçar. Sua poesia moderna é por vezes plenamente povoada pelo que existe de mais repugnante no Simbolismo francês e pela tradição vernacular da poesia portuguesa, às margens do quinhentismo. O poeta dividia suas paixões entre ensinar literatura, traduzir bons e maus poetas, e, já consagrado, apoiar a prática do Concretismo – ao mesmo tempo que expurgou da Apresentação da poesia brasileira (1944) os poemas de Oswald de Andrade, e organizou – com elogios – as Rimas do medíocre José Albano. Sua poesia tem o valoroso mérito de cristalizar no Modernismo o corpo canônico de temas que fez parte de todas as correntes poéticas anteriores; em seu caso, tal fenômeno se deu com bastante vigor quando abordava a morte, o amor e a religiosidade. Deve ter sido com base nessas qualidades que há algum tempo Mário Faustino escrevia: “graças a ele, todos os menores de 50 no Brasil, normalmente inteligentes, respeitam a poesia que chamam de ‘moderna'”. [6]

De certo modo, pode-se pensar o caso Manuel Bandeira como um paradoxo. Grande parte de suas experiências é de fato a fulguração avant la lettre do que efetivamente ocorreu no desdobramento modernista. Encontram-se em seus livros, por exemplo, alguns veios de certa poesia memorialística que resgata a província sem o saudosismo ufanista, e se reporta à infância com acentos ternos, mas nunca demasiadamente emocionais. O milagre instaurado por esse São João Batista do Modernismo – como a ele se referia Mário de Andrade – é evidente: antecipadora e clássica, sua poesia, em vez de conflituosa, é conciliadora. No entanto, a santidade de Manuel Bandeira não se delimita apenas a uma prática literária: ela é, também, tema de sua poesia. Quando o modernista foi recebido por Ribeiro Couto na Academia Brasileira de Letras, em 1940, seu companheiro foi preciso: “A educação cristã que recebestes em vosso lar é o substrato de toda a vossa obra”. [7] De fato, à margem de toda pomposidade, a fusão do lar materno com a religiosidade é um momento marcante em sua poesia, com ecos ouvidos até mesmo nos versos eróticos, que repercutem também na infância. Enquanto, no mesmo ano de 1930, Drummond ironizava aspectos da religiosidade em poemas como “Romaria” e Murilo Mendes trilhava as vias surrealistas de sua crença, Manuel Bandeira já havia forjado símbolos do mais tradicional cristianismo, como em “Natal” e “Balada de Santa Maria Egipcíaca”. Aliás, a predileção do poeta por personagens femininas é característica de um exorbitante sensualismo. Sua eroticidade estava quase sempre acompanhada por expressões de ordem teológica, com preocupações que se voltavam aos temas da castidade e da virgindade, “a rosa da inocência”. Nem todo poeta poderá escrever versos tão notáveis como esses:

Em meio do pente 

A concha bivalve 

Num mar de escarlata. 

Concha, rosa ou tâmara.

(“Água-Forte”),

numa das mais belas imagens do sexo feminino.

Versos de um cristão conturbado, o mesmo que escrevia

E saudava a matéria que passava 

Liberta para sempre da alma extinta. 

(“Momento Num Café”)

ou então

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo 

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

(“Arte de Amar”)

É justamente observando a imagem da mulher em sua poesia que se pode concluir sobre a tentativa manuelina de organizar uma tradição poética moderna que não perdesse um só vínculo com o passado. A morte, por exemplo, aparece já em A Cinza das Horas (1917) representada na pele da irmã morta. Em Carnaval (1919), a morte nada mais é do que uma prostituta, arrebatando o seu próprio pai: é, na sua imaginação, uma Dama Branca:

A Dama tinha caprichos físicos: 

Era uma estranha vulgívaga. 

(“A Dama Branca”)

Em mais de um momento de sua poesia, a morte estará associada à prostituição e o amor físico à compreensão da morte, fechando desse modo o círculo das experiências humanas.

Notável pelo seu plano coerente – em que persistem a mais bem dosada mistura entre os registros popular e culto e a presença do humor -, a poesia de Manuel Bandeira assume quase sempre a estranha e moderna configuração oriunda do que havia de mais crepuscular no Simbolismo. Tanto pela musicalidade quanto por seu ideário estético, muitos de seus poemas foram marcados por um renitente apego a fórmulas ultrapassadas; mas controladas por uma sensibilidade que deu forma a diversos novos procedimentos, contaminando-se – ele, tão doente, mas que ultrapassou os oitenta anos de vida – da saúde da modernidade.

2. A CIDADE DE BANDEIRA

Louvo a cidade nascida 

No morro Cara de Cão, 

Logo depois transferida 

Para o Castelo, e de então 

Descendo as faldas do outeiro, 

Avultando em arredores, 

Subindo os morros maiores, 

– Grande Rio de Janeiro!

MANUEL BANDEIRA, “Rio de Janeiro”

O recifense Manuel Bandeira nunca foi um cidadão adulto do Recife: cedo abandonou a sua infância naquela região do Nordeste e, vindo para o Rio de Janeiro, estabeleceu um diálogo amoroso e crítico com a Cidade Maravilhosa. Em sua obra, um poema como “Evocação do Recife” assinala que os primeiros anos de sua vida eram permeados de lembranças fragmentadas, recortes impressionistas, à maneira de imagens que subitamente vêm à tona. Apenas em Petrópolis, como o próprio Bandeira escreveu, ele nasceria para a “vida consciente”. A atmosfera evocativa, quase sempre muito melancólica, terá desdobramentos em toda a extensão de sua obra. Contudo, dentre todas as cidades em que viveu, o Rio de Janeiro mereceu um especial lugar ao sol. Nela, Bandeira escreveu a maior parte de seus livros e, como alguém que reverenciava as influências e o convívio com livros e amigos, exaltou as belezas, condenou os governantes com seus projetos absurdos, discorreu sobre seus hábitos e se consumiu em cada um de seus bairros, desde uma “casa inconfessável” na Riachuelo até a amizade com os moleques que povoavam certa rua em Santa Teresa.

Bandeira chegou ao Rio de Janeiro aos dez anos de idade e, confessa no poema “Infância”, já “conhecia a vida em suas verdades essenciais”. Sua família se instalara numa casa em Laranjeiras, de onde o então aluno se encaminhava para o Externato do Ginásio Nacional, atual Colégio Pedro II. A nova cidade teve um efeito decisivo na sua vida. Numa crônica de Flauta de papel (1957), ele escreveu: “Quando vim para o Rio, em 1896, fiquei maravilhado com as laranjas seletas que se compravam ao quitandeiro ambulante italiano. Eram sempre deliciosas e baratas.” [8] E completava numa das crônicas recolhidas em Andorinha, andorinha (1960): “Nas Laranjeiras de minha infância, sossegado arrabalde (já sem laranjeiras), os perus se vendiam em bandos, que o português tocava pela rua com uma vara, apregoando: ‘Eh, peru de roda boa!’” [9]

A tuberculose, ameaçando sua vida e afastando-o dos estudos de arquitetura, forçou-o a uma espécie de peregrinação por cidades serranas do Brasil, e finalmente confinou-o por algum tempo num sanatório da cidade suíça de Clavadel. A estada, além de lhe assegurar a cura, colocou-o ainda mais em contato com os Simbolismos francês e alemão, cultivando a personalidade de um “tísico profissional” que, pelo convívio estreito com a morte, transformou-a em tema primordial de seus versos. Nessa fase, a escolha de Bandeira por cidades não era propriamente uma questão de gosto pessoal. Era, ao contrário, uma questão de sobrevivência: Teresópolis e Clavadel também passaram a integrar o repertório de seus remédios. Se a tuberculose o fazia viajar, tais cidades eram o seu porto seguro. Talvez por isso o locus amœnus de Pasárgada – para além de sua geografia utópica – seja justamente o espaço de sua cura, o lugar em que Bandeira experimentaria mais palpitante o sentimento de estar vivo. Naquele instante, sua vida era uma estranha equação que combinava a iminência da morte e a cura definitiva.

O amor extremado pelo Rio de Janeiro, porém, cristalizou-se quando a “indesejada das gentes” já não era um perigo tão próximo – ou, pelo menos, era tão natural quanto para qualquer um. A cidade, em seus poemas e crônicas, surgiu não apenas como referência de seu habitante, mas como presença que interferia na sua criação. Quando, em l920, Bandeira mudou-se para a Rua do Curvelo (atual Dias de Barros), em Santa Teresa, mal desconfiava da importância vital daquele lugar. Chegou mesmo a escrever um trecho em Itinerário de Pasárgada (1954), seu livro de memórias, que poderá causar dores de cabeça em algum historiador da literatura: “O elemento de humilde quotidiano que começou desde então a se fazer sentir em minha poesia não resultava de nenhuma intenção modernista. Resultou, muito simplesmente, do ambiente do morro do Curvelo.” [10] Os treze anos em que morou no pequeno quarto serviram de tema para muitas crônicas, nas quais delineou um Rio de Janeiro trivial, corriqueiro, quase doméstico. Outras referências, mais herméticas, guardou-as em sua poesia. No poema “Comentário Musical”, o belo trecho

O meu quarto de dormir a cavaleiro da entrada da barra.

Entram por ele dentro 

os ares oceânicos, 

Maresias atlânticas:

é a anotação sentimental de quem abria as janelas e vislumbrava boa parte da Praia do Flamengo. Muitos anos depois, morando num apartamento da Avenida Beira-Mar, o poeta escreveria:

Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir

– verso com que fazia menção não apenas ao Aeroporto Santos Dumont, mas à velhice e à morte. Se a rua do Curvelo lhe deu testemunho da vida dos moleques de rua, das lavadeiras e de um reencontro com a pacata recordação recifense, sua mudança para a rua Morais e Vale, na Lapa, foi de certo modo sua experiência com o submundo e a miséria.

Lapa – Lapa do Desterro -, 

Lapa que tanto pecais!

lamenta-se ele na “Última Canção do Beco”.

Solitária, isolada num beco, sua poesia nesse instante exterioriza um sentimento de solidariedade: mais do que a paisagem geral daquele bairro, o que realmente lhe interessava era o beco sujo. Tentando uma compreensão da Lapa, Manuel Bandeira escreve numa das crônicas de Flauta de papel o sentido de uma ambiguidade: “Basta dizer que a Lapa é um centro de meretrício todo especial (onde vivem as mulatas mais sofisticadas do Rio), e esse meretrício se exerce no ambiente místico irradiado da velha igreja e convento dos franciscanos.”

Num poema datado de agosto de 1953, Bandeira saúda o seu novo apartamento, na Avenida Beira-Mar, contrastando- o com as antigas sombras da Lapa:

Depois de dez anos de pátio 

Volto a tomar conhecimento da aurora. 

(“Lua Nova”)

Porém, aquele espaço, tão corretamente escolhido para o seu repouso, aguçaria um crítico Manuel Bandeira extremamente indignado com os desmandos que ocorriam em sua cidade. Claro que, antes disso, Bandeira já reclamara de lugares que não tiveram a tradição respeitada – como o Largo do Boticário, que conheceu menino, apelidado na velhice de Praça do Farmacêutico, por causa do veneno contra ratos que estavam aplicando numa mangueira, única lembrança remanescente do lugar. Seu instinto de preservação também o levou, com Carlos Drummond de Andrade, a reunir o maior número de textos sobre a cidade em Rio de Janeiro em prosa & verso, por ocasião do quarto centenário de sua fundação. No mais, Manuel Bandeira começou a escrever versos de circunstância sobre as calamidades que testemunhava. A mudança do nome das ruas e a sua limpeza eram os temas básicos sobre os quais rimava o seu desgosto. Na edição aumentada de Mafuá do malungo (1954), escreveu verdadeiros manifestos, clamando pela coisa pública. Numa “Prece” ao então “prefeito Henriquinho”, ele pede com fervor religioso ao Senhor Bom Jesus do Calvário e da Via-Sacra:

Quando o prefeito morrer 

Não o mandes para o Inferno: 

Ele não sabe o que faz. 

Mas um seculozinho a mais de Purgatório 

Não seria mau. Amém.

A perseguição aos prefeitos, aliás, foi uma constante: como os problemas continuavam e os prefeitos passavam (ars longa, vita breve), ele prosseguia nas suas reivindicações. Numa “Carta-Poema” ao prefeito Hildebrando de Góis, reclamou do lixo e da lama acumulados no pátio de seu edifício. Tudo em vão. Num outro poema, “Petição ao Prefeito”, renovava as esperanças junto ao novo ocupante do cargo, o General Mendes de Morais. Fez questão de frisar:

Não suponha que eu exagero, 

Excelência: é a verdade pura, 

Sem nenhum véu de fantasia. 

Já o pintei uma vez: não quero 

Fabricar mais literatura 

Sobre tamanha porcaria!

Embora ainda desejasse ver o seu pátio tão limpo quanto a calva do General, Manuel Bandeira subscreve o seu pedido à autoridade militar com muita educação. No mesmo livro procura ainda sensibilizar um certo Adelmar, para que plante um cheiroso jasmim em meio ao jardim triste da Academia Brasileira de Letras. Envolvente, caseiro, Bandeira testemunhou cerca de setenta anos de transformações cariocas, correndo até mesmo o risco de sair “neoconcretizado até os rins” da famosa exposição de 1959 no MAM. Mas demonstrou preocupar-se com a cidade como se ela fosse seu próprio corpo, e expôs dessa maneira a face mais engajada de sua poesia. (1986).

_________________________________________________________

[1] A primeira parte deste ensaio foi publicada em Verve, n. 0, dezembro de 1986.

[2] Itinerário de Pasárgada (Rio de Janeiro: Jornal de Letras, 1954), p.36.

[3] Cf. Op. cit., p. 90.

[4] Cf. Manuel Bandeira (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1980), p. 86.

[5] Cf. Itinerário de Pasárgada, p. 83.

[6] Poesia-experiência (São Paulo: Perspectiva, 1977), p. 211.

[7] Dois retratos de Manuel Bandeira (Rio de Janeiro: São José, 1960), p. 53.

[8] “Carta Devolvida”, in Flauta de papel (Rio de Janeiro: Alvorada, 1957), p. 85.

[9] “Pêsames ou Parabéns?”, in Andorinha, andorinha (Rio de Janeiro: José Olympio, 1966), p.373.

[10] Itinerário de Pasárgada, p. 59-60.

Print Friendly