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O Pseudo e o Psiu (sobre a poesia de Armando Freitas Filho) [1]

1. Ao escrever o verso “eu sou um livro”, em Longa vida (1982), Armando Freitas Filho declarou a natureza racional de sua poesia, anteriormente filiada ao movimento práxis. A conjunção da pesquisa formal sofisticada e da busca de uma resposta política, no início da década de 60, comprometeu a sua poesia por pelo menos dez anos. Enquanto durou a poesia práxis, invenção de um só poeta e teórico, Mário Chamie, e plenamente representada por ele mesmo com um único livro, Lavra lavra (1962), a poesia de Armando Freitas Filho ficou incubada. Seu primeiro livro, Palavra (l963), anda não era totalmente fiel àquelas novas teorias, o que permite vislumbrar certos procedimentos que só serão retomados em livros recentes e de maturidade. Naquela fase, um poema como “O Corpo”

Acrobata enredado 

Em clausura de pele (…) 

Engenho de febre 

Sono e lembrança.

não poderia jamais pertencer aos princípios técnicos da poesia práxis. Recorde-se que o próprio Mário Chamie, em manifesto publicado em março de 1959, declara que “o poema não se objetiva e deixa de constituir produto de consumo estético se o poeta é sentimental.” [2] Assim, censurando o poeta que “julga o tempo em termos subjetivos”, o que restava a Armando Freitas Filho? A resposta é simples: a publicação de Dual (1966) e de Marca Registrada (l970) – livros que não se diferenciam um do outro e, de resto, representam meras curiosidades de uma vanguarda esterilizante. Escritos com metros curtos, valendo-se de metáforas construtivistas, seus poemas mondrianescos careciam, naquele instante, de vigor filosófico. Isso porque, procurando ser coerente com o princípio da “área de levantamento” dos poemas sociais “de esquerda”, ele questionava temas como a campanha eleitoral, a zona do Mangue, o chá de caridade, o IPM – e este, sobre a Zona Norte, cujos versos

em abafadas bibocas 

o proletariado bebe 

balbucia nos bares 

os bueiros babam

servem de exemplos tanto para a debilidade da análise quanto para as entediantes aliterações.

A solução de seu dilema aparece em De corpo presente (1975), em que refina os procedimentos anteriores ao se filiar à dicção poética de João Cabral de Melo Neto e da última fase de Cassiano Ricardo, herdeiros de uma tradição lírica racional. Desse modo, ele revigora o seu subjetivismo ao assimilar, paradoxalmente, teses anteriores às da poesia práxis; isso não significou, porém, retrocesso ou anacronismo, e sim o adensamento de sua poesia, que ganhou força meditativa. Nesse livro de forte unidade encontram-se poemas como “Cartão de Aniversário”, de estirpe drummondiana,

o tempo acende suas velas: 

olhos de chama e lágrimas de cera 

sobre os panos de breu da memória

“Achados & Perdidos” e “Corporifortificação”, este último apresentando o corpo como reduto ecológico e vítima da ameaça atômica, numa investigação do problema da sobrevivência. A radicalização de seu lirismo lhe permitiu escrever À mão livre (l979), um dos melhores e mais ousados livros de nossa tradição erótica. Nele, a prática do trocadilho, em que é um mestre imbatível, se transforma num artifício de sensibilidade apurada a exemplo de

músculo de crepom 

e crepúsculo

ou

musa de ar nouveau 

(“Fragmentos de um Domador”)

Seu erotismo não é marcado nem pela sutileza nem pela elisão, mas pela fúria e pela evidência. Do mesmo modo, seus trocadilhos não mantêm relações com o humor, mas com formas conotativas que expandem as “leituras” de seus poemas, incitando o leitor a múltiplas interpretações e multifacetando seu ego, conforme escreverá em Longa vida:

armando suas falcatruas 

e um eu que é um pseudo 

um psiu.

Talvez seja essa evidente mistura de erotismo e violência que lhe tenha permitido escrever o poema “A Flor da Pele”, em que, partindo da definição do verbete pele, transforma-o numa realidade de amor e destruição.

Armando Freitas Filho, contudo, jamais manifestou o pessimismo, embora não lhe falte acuidade crítica. Ao escrever Longa vida, porém, sua poesia atinge um momento de rara precisão reflexiva. É um livro de crise, mas, e por isso mesmo, revelador de irônicas indagações que jamais se convertem em truques fáceis, o que era tão comum em sua estreia. Crise, afinal, é o oposto de estreia. Assim, põe em crise a literatura:

quem escreve sempre alcança 

a quem 

o quê?

A velhice:

Valium, valei-me 

pois aos quarenta 

eu não sei se eu sou eu 

ou se eu sou ou.

E ainda mais radicalmente:

na verdade nada temos 

a fazer na vida 

(já que ela vive sem nós).

A preparação do futuro:

Passar o coração a limpo 

ou o caderno de telefones.

Principalmente, ele se dá ao direito de formular uma séria revisão sobre os anos da ditadura militar. Em “As Paredes Têm Ouvidos”, em que retoma lemas ufanistas, escreve um dos mais bem-sucedidos poemas sobre a angustiante e brasileira fusão de futebol e tortura:

e salve a seleção 

salve-se quem puder.

De certo modo, o mesmo tom entre confessional e denunciador se repete em 3×4 (1985), exibindo rápidas, instantâneas anotações, à maneira da mania oswaldiana de kodakar a realidade. Insistindo na atenção que sempre dispensou às imagens visuais (em especial às artes plásticas), ele se divide ainda mais não apenas em sucessivas possiblidades, mas em sucessivos exílios.

Um dia 

ou um dilema?

ele se pergunta, renovando a célebre indagação de Shakespeare. Contudo, nada marca mais profundamente um certo exílio sentimental do que Paissandu Hotel (l986), em que se vale com mestria de um recurso quase sempre temerário, o do poema de circunstância. Preso num quarto de hotel, preso à linha telefônica, preso no país e, enfim, preso à vida, Armando Freitas Filho abandonou definitivamente a dualidade das vanguardas e se transformou num de nossos poetas mais plurais.

2. VIDE VERSO [3]

Os poemas de Armando Freitas Filho vêm pouco a pouco revelando aquele estilo inconfundível que é, muitas vezes, a imperdoável repetição de tantos poetas, ou então o sintoma evidente da maturidade de poucos. Poeta que nunca escondeu, em sua primeira fase, o engajamento aos princípios da poesia práxis e, em sua segunda fase, a influência do modus cerebral de João Cabral de Melo Neto, ele se distanciou dessas duas influências por se permitir tanto a ironia do trocadilho quanto o erotismo desvelado, o que o levou a buscar irreverentemente a matéria de sua poesia não na linguagem dos livros, porém na linguagem da televisão, dos anúncios classificados, da vida que se apresenta

em neon/néant – e náusea. (“Torpedo”)

Dentre os cinquenta e oito poemas de De cor (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988), encontram-se os quatorze de Paissandu hotel (1986), livro que mereceu uma edição fora do comércio e no qual já se percebia a depuração não só dos metros – sempre curtos, com abruptos enjambements -, mas também de versos que, quase a renovar a tendência contemporânea da intertextualidade, se valem de siglas, abreviaturas e estrangeirismos que remetem, por sua vez, à linguagem da cultura de massa.

Não será exagero, por isso, afirmar que Armando Freitas Filho concebe, na sua concisão, uma poesia digital: a exemplo de “Q. 508”, título que designa o número de um quarto de hotel, o qual o poeta evita confundir com alguma obra de Mozart, ou de outro, “Hot.Mot.Res.”, fórmula sintética existente nos anúncios de prostituição, que o poeta ainda traduz por “Calor. Palavra. Coisa”, seus poemas muitas vezes esmiúçam a informação que se esconde por trás das formas condensadas da comunicação. Por esse motivo, seus poemas abandonaram a antiga preferência pelo trocadilho apenas sonoro e pelas aliterações, e passaram a revelar uma opção pelo visual. Mas o poeta de De cor não abandonou de todo a musicalidade de seus momentos mais líricos, como no belo verso

A lua ainda ladrilha o mar           (“l986”)

ou em outro,

As praias passam e trocam 

sucessivos lençóis.       (“Trailer”)

Note-se ainda que a poesia de Armando Freitas Filho reduz a importância dos verbos e valoriza a dos substantivos, recurso imperioso de quem deseja concentrar o máximo de sentidos numa só palavra, permitindo que ela se comunique com outra apenas por sua semelhança silábica, fônica – a mais casual possível, a exemplo do que ocorre num poema de natureza erótica, “A C.”, em que uma estrofe de sete versos só possui um verbo.

Outro ponto notável em sua poesia é a presença de palavras estrangeiras, quase sempre monossilábicas, que agem com a mesma intensidade das siglas e abreviaturas. Por razões óbvias, deu-se preferência ao idioma inglês, e dele se extraíram tanto palavras que – última flor do Lácio! – já se amalgamaram ao idioma português (como hall e design) quanto onomatopeias (a exemplo de slam!), com as quais Armando Freitas Filho tenta estabelecer relações entre coisas, num processo que guarda semelhança com o palavra-puxa-palavra identificado na poesia de Drummond pela crítica sensível de Othon M. Garcia. Sua poesia possui, portanto, um repertório de palavras que acaba sendo mais estranho do que estrangeiro, incluído num cotidiano que se transforma em excesso de linguagem. Isso porque, na sua poesia, a presença de idiomas é, enfim, a presença de novas realidades: mistura-se o solene fiat lux ao clic que acende a luz da televisão, com intenções críticas e irônicas:

Fiat TV! Clips, vídeos 

vale tudo 

para flagrar a contagem final. (“Arranjo Para Palavras”) [4]

Em muitos momentos, contudo, a virtuosa expressão desse poeta que conhece tanto a corrupção quanto o enriquecimento de sua língua deriva para a repetição, para uma exaustão completa de sua sensibilidade. Assim, ao lado de poemas de grande emoção, como “Fórmula Um”, “1986” (em que pese o último verso), e o definitivo “Tango”,

Adeus. Nem o meu olhar me alcança.

uma das mais densas meditações da poesia brasileira sobre a morte, subsistem gratuidades como a do verso “com rapidade e velocidez” ou “surto-circuito”, e algumas vezes a excessiva e cansativa superposição de imagens, como nos primeiros versos de “Com Óculos Rimbaud”.

Se Armando Freitas Filho é poeta afeito ao racionalismo, não é, porém, poeta de cultura livresca – e isso explica em muito sua sensibilidade benjaminiana para os efeitos da vida moderna sobre a arte. No seu caso, particularmente, as linguagens velozes dos jornais, dos letreiros luminosos, da televisão – a mensagem dos flashes. Em De cor predominam os temas da velhice e da morte em relação aos de quem já concebera revisões histórico-políticas – a exemplo de um poema anterior, “Corpo de Delito” – ou aos de quem primara pela nota erótica, como em À mão livre. Um dos processos mais evidentes em seu novo livro relaciona-se à sua tentativa de reunir realidades diversas, diante das quais o poeta assume certa perplexidade:

Xerox, tigre e terror

Reproduzo o que não consigo exprimir. (“Torpedo”)

De cor é um livro realizado – não fosse por aquele estilo inconfundível que o poeta soube conquistar maduramente, pela pesquisa de seu idioma português, buscando nele as expressões mais contingentes para expressar certo ritmo staccato que domina a dicção do poeta. É um livro definido, de uma poesia marcada pela elisão, até mesmo pela técnica do grafito, que consegue converter o absolutamente moderno em absolutamente legível.

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[1] Suplemento Ideias, Jornal do Brasil, 31.1.1987.

[2] “Termos Didáticos Para a Consideração do Poema”, in Instauração práxis (São Paulo: Quíron, 1974), vol 1, p. 17.

[3] Verve, n. 32, janeiro de 1990.

[4]  Essa mistura é a mesma “mistura de estilos” (Stilmischung) definida por Erich Auerbach em Mimesis (1946). Já se encontra presente no Modernismo brasileiro, sobretudo em Carlos Drummond de Andrade dos livros iniciais. A análise do efeito do Stilmischung é percebida por José Guilherme Merquior, in Verso universo em Drummond (Rio de Janeiro: José Olympio, 1975), p. 14-16.

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