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OUTRO PRIMEIRO LIVRO*

Felipe Fortuna

Minha primeira preocupação, ao selecionar os poemas para o meu livro Ou Vice-Versa (1986), foi a de eliminar os poemas de amor. Não foi de modo algum a tentativa de ocultar ou eliminar a primeira pessoa: um dos poemas escritos se intitula “Confessionário”, e são muitos os que tematizam o eu do poeta. Minha resistência aos poemas de amor se devia um a princípio de organização que privilegiava a ironia, o ceticismo e a própria experiência literária. O lirismo amoroso foi simplesmente proscrito do livro por não atender às exigências que eu impunha à produção poética que me interessava. Desde que comecei a organizar Ou Vice-Versa, cerca de quatro anos antes da sua publicação, concebi pelo menos dois outros títulos. O primeiro foi Pandemônio. A palavra possui não apenas uma sonoridade intensa e grave, como ainda me seduz pela ideia de totalidade, de anarquia generalizada. Porém, a mesma palavra desvelava o meu gosto pelos poetas simbolistas que me fascinaram sobretudo por explicitarem as relações entre a arte e os estados patológicos, e percebi que seu uso era indesejável no meu livro. Creio que pandemonium foi palavra inventada por John Milton, mas seu interesse, para mim, centrava-se na descoberta do satanismo dos simbolistas pelo leitor que, ainda adolescente, descobrira um modo altamente subversivo de praticar a poesia e a vida, em conluio com as forças do Mal. Foi assim que pude ainda transmitir o valor do coloquialismo e do humor, como em Tristan Corbière, ou da trágica adesão a dogmas científicos dominantes, como em Augusto dos Anjos. O segundo título, Desordem, tentava ser uma tradução moderna daquele título demasiado arcaico – mas não conseguiu traduzir-lhe a complexidade; era tão-somente uma solução medíocre que não durou muito tempo.

O título Ou Vice-Versa corresponde a todas as minhas intenções: indica relações de ambiguidade, ilude o leitor que vê surgir a expressão sem conhecer a afirmação anterior, sugere realidades controversas. Como escrevi num dos três poemas que intitulam o livro,

Não é verso, é anti-, é versus,

como o sim dentro do não.

Não quis ocultar ambiguidade alguma, sentido algum; não quis imitar Manuel Bandeira, que seccionou a palavra libertinagem na capa de um dos seus livros para que, como ele mesmo afirmou, não o transformassem num autor devasso.

Foram muitas as influências que atuaram na minha formação, e prefiro citar, primeiramente, as não-literárias, a exemplo de Paul Klee. Recordo que, entre as muitas leituras de entrevistas com escritores, uma boa parte faz referência importante às artes plásticas, talvez mais prestigiadas do que a música. O século XX possui evidente cultura visual – e as sociedades contemporâneas mais desenvolvidas (por exemplo, Tóquio) reduzem quase toda informação a um sinal luminoso, um signo não-verbal, devotadas ao fenômeno digital. E, sendo franco admirador do artista da Bauhaus, me fascinou sobretudo a harmonia conseguida entre o rigor e o ludismo. As cores de que se vale Paul Klee são exuberantes, os traços são definidíssimos, e criam uma tensão que pode, por meio de composições que lembram mosaicos de concepção sofisticada, aludir à infância. A lição que mais aprendi com o pintor foi a do paradoxo; por isso mesmo escrevi que sua pintura era

equação coberta de cores

por todos os lados.

Obviamente, não posso esquecer a influência doméstica e familiar do meu pai, que é cartunista e humorista. Eu não desenho sequer uma linha curva, mas quem pode negar a importância da palavra na composição da piada? Quase afirmo que foi por não saber desenhar que comecei a escrever – mas a frase já me parece demasiado literária. Foram essenciais, porém, influências de todo o humor brasileiro que pude conhecer, e ainda dos cartuns melancólicos de Chas Addams, de uma série grande desenhistas os mais diferentes, como André Français e Quino, que de alguma forma viram-se deglutidos por mais um antropófago brasileiro. João Cabral de Melo Neto escreveu um belo ensaio sobre Juan Miró, e lamento que tantos poetas meus contemporâneos tenham conhecimento quando muito rudimentar de artes plásticas. A cultura poética, sobretudo a atual, tão marcante pela confluência de linguagens, é capaz de se alterar com novas descobertas tecnológicas, e não cria oportunidades para o poeta que se define simplesmente como “espontâneo” ou naïf”, numa confusão da ignorância com a criação.

Um dos bons conhecimentos que adquiri durante o preparo de Ou Vice-Versa foi o da versificação. Aprendi versificação em tratados, manuais, exercícios, poemas, em tudo o que tratasse do tema. É primordial, assim como conhecer a história de sua língua, conhecer as mudanças silábicas, as antigas acentuações, e compará-las às do verso moderno. É interessante conhecer versificação em línguas estrangeiras, nem que seja para refletir sobre os nossos procedimentos mais corriqueiros. Com o conhecimento seguro da versificação, compreende-se por que é enorme a distância das dez sílabas métricas de Dante das dez de Camões, e mesmo os recursos mais radicais de e.e. cummings. Em meu livro existe uma preferência pelo verso de sete sílabas – que atualmente já não me agrada justamente por ser muito simples e fácil em seus efeitos – e pelo de dez sílabas. Mas em pelo menos dois poemas, “Perguntas ao Silêncio” e “Relógio Digital”, utilizo o octossílabo, o que é uma influência cabralina assumida. Noto que o uso desse metro confere maior gravidade ao ritmo do poema, e ajuda o eventual esforço filosofante. Significativamente, ambos os poemas são inquisitivos. No segundo poema citado, o metro de oito sílabas exige uma descrição do objeto em questão o relógio digital – de uma forma que seria muito diferente em outra medida:

Agora nem todo relógio

possui pulsar habitual:

o rastro de cada segundo

ou feneceu ou se cansou.

O segundo e o quarto verso me parecem modelares para a ilustração do que afirmei. Existe uma ressonância explosiva nas palavras escolhidas no segundo verso e nenhum conectivo; a óbvia aliteração de /possui pulsar/ repercute em /habitual/, forçando que se leia /habi-/ /-tual/. O último verso, por sua vez, com duas partículas ou que repercutem em /cansou/, e ainda /feneceu/ que repercurte em /ou se/ não significam, isoladamente, um trabalho artesanal de cada palavra do verso, mas sim uma interação entre o metro escolhido e o recurso expressivo da leitura. Já reconheço o riso irônico do leitor que me pede experimentos mais radicais em poesia, e não a simples repetição de um processo afinal nem tão original assim. Deponho, no entanto, sobre conquistas muito pessoais, que se originam sobretudo do estudo e da informação, mas que já têm resultados na linguagem mais radical e mais pessoal que ainda se inicia.

O poema “Guichê” é sobre o drama de um burocrata qualquer. Penso atualmente que seria interessante colocá-lo num display eletrônico, para que seus versos surjam em velocidade diferentes e para que possa valorizar sensivelmente cada palavra. “Naufrágio” tenta reproduzir, por sua vez, a sofreguidão de alguém que se afoga no mar; isso justifica a pontuação de que me vali, que deve ser lida com grandes alterações de ritmo. O mesmo vale para “A Náusea”, uma paráfrase poética do desespero existencialista, em que se passeia pela cidade com a sensação de estranhamento do mundo, um tanto à maneira do Antoine Roquentin do romance de Jean-Paul Sartre. Considero esses três poemas os mais experimentais de Ou Vice-Versa.

Paguei um bom tributo a várias influências literárias. Creio existir uma influência básica de Carlos Drummond de Andrade e, em menor grau, de Fernando Pessoa. Não são, contudo, influências demasiado anacrônicas: ainda agora, quando releio o livro, percebo haver escapado à maldição que muitos dos poetas mais contemporâneos e mais vanguardistas conheceram quando se imiscuíram à Geração de 45. Publiquei o poema “Ansiedade” (“Eu sou. / Eu serei. / Euforia.”) muito mais pelo prazer do trocadilho do que pela poesia: eco de quem se divertiu não apenas com o primeiro momento modernista, mas também com a poesia marginal dos anos 70. Mas nunca publicaria outro igual. Algumas pessoas se disseram um tanto impressionadas pela constante referência ao silêncio e à morte. Um professor ressaltou as imagens de fecundação. Minha experiência de aluno de graduação e pós-graduação em Letras talvez me tenha feito escrever o poema “A Tragédia da Existência”, que se resume aos curtos versos

Quero fazer uma especulação metafísica.

Ou seja:

O título é uma ironia à empáfia dos professores mais medíocres das Faculdades em que estudei, que transformavam em drama metafísico uma simples gralha tipográfica. O resultado de seus trabalhos acadêmicos, que escondiam a nulidade por meio de uma retórica ilegível e hermética, é o grande vazio, a grande imobilidade que se tenta mostrar depois daqueles dois pontos do verso. Tenho certeza de que me livrei do destino melancólico de me transformar num desses professores não só ao realizar a autocrítica, mas também ao me iniciar na crítica literária de jornal.

É um sinal de pouca modéstia escrever tantas laudas sobre um livro, enquanto alguns outros poetas escreverão sobre o conjunto dos seus. Mas estou considerando dois outros livros ainda não publicados: Poemas da Pele, de poemas amoroso-eróticos; e Atrito, que modifica algumas características de Ou Vice-Versa e indica a evolução da juvenilia que repercute em seus versos. O Brasil não vive apenas o drama do autor que publica um livro e jamais atinge a segunda edição, conseguindo alocar os 3000 exemplares, quando muito, entre amigos, família, imprensa e, por fim, leitores comuns; vive, também, a sanha oportunista dos “editores” que não passam de intermediários entre o autor e a gráfica, ou editores que acreditam no poeta se ele for também alguém de notável atividade intelectual (um professor, um jornalista, alguém da televisão). Assim, lamentavelmente, poetas como João Cabral de Melo Neto, Armando Freitas Filho e Tite de Lemos encontram-se na mesma coleção de nulidades absolutas. Não existem atualmente, à exceção da coleção Claro Enigma, critérios editoriais inteligentes na área de poesia.

Tenho, por fim, uma certeza: a de que não deverei e não poderei escrever o próximo livro de poesia da mesma maneira como escrevi Ou Vice-Versa e os inéditos de Poemas da Pele e Atrito. Não faz sentido escrever poemas que se aparentam aos próximos. Ainda não sei que novidade me espera; mas sei que, se esta novidade não existir, também não existirá mais a minha poesia. Reconheço que talvez seja uma preocupação de época temer pela repetição. Mallarmé jamais se preocuparia com isso; e muito menos Borges, este sonhador que descobriu ser impossível escrever algo original. Porém, penso que não poderei ser igual à expressão de minha própria sensibilidade. Todo poeta precisa educar-se para não repetir a fatura por vezes ágil e adestrada de seus poemas. É muitas vezes necessário trair a musicalidade de um verso, que já vem pronta e adequada à leitura que o poeta faz quando escreve o seu próprio poema. A Língua Portuguesa precisa expandir-se muito mais, e não duvido de que boa parte dessa expansão se dará por meio do experimentalismo. A Língua Portuguesa está isolada em seu continente, e fora dele não tem grande expressão. Quando Mário Faustino afirmava que o poeta contemporâneo tem de ser perigoso como Dante foi perigoso, estava talvez incitando os poetas a escreverem uma poesia que fosse não apenas moderna e atuante, mas também monumental. Porque se trata da salvação de uma Língua o surgimento de um poeta que procura, ao mesmo tempo, renovar-se e permanecer.

* Palestra preparada para o ciclo “Artes e Ofícios da Poesia”, apresentada no Museu de Arte de São Paulo em maio de 1990, e publicada por Augusto Massi na coletânea Artes e Ofícios da Poesia (Porto Alegre e São Paulo: Artes e Ofícios/Secretaria Municipal de Cultura, 1991), p.126-131. Foi também publicada ao final do meu livro de poemas Em seu lugar (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2005), p.241-248.

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