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Prefácio de Felipe Fortuna para Piedra Fundamental

JOÃO CABRAL DE MELO NETO: PERFIL DA OBRA

Felipe Fortuna

para Sara Brandellero

(1) Da Pedra ao Amor Mineral: o Sonho Dirigido

Para a apresentação da poesia de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), serve de guia uma abrupta declaração de Jorge Luís Borges, como sempre apresentada de maneira surpreendente e paradoxal: “Por lo demás, la literatura no es otra cosa que un sueño dirigido.”1 No caso do poeta brasileiro, percebe-se um processo combinatório em que o onirismo, presente no primeiro livro, Pedra do Sono (1942), pela via do surrealismo, se ajusta gradualmente às exigências de uma poética que busca o autocontrole e o apreço pela forma. Nos livros maduros, a exemplo de Quaderna (1960), o poeta demonstra severo domínio da técnica, como se estrangulasse a inspiração e a espontaneidade, e apresenta ao leitor poemas que têm o aspecto de objetos perfeitos, em si e no seu conjunto. Surgiu, assim, no âmago mesmo da tradição poética brasileira, tendente ao barroco e à eloqüência lírica, uma obra de elaborado rigor e de contenção. O “sueño dirigido” que o poeta persegue encontra sua expressão culminante em poemas como “Psicologia da Composição”, “Fábula de Anfion” e “Antiode”, nos quais se elabora uma crítica em relação à própria poesia, com denúncias contra o excesso metafísico, a metáfora fácil, a incontinência verbal. Dessacralizador, João Cabral de Melo Neto deu início a um alto questionamento sobre o que pode ser, nos tempos atuais, a atitude poética.

Mas nem o tônus surrealista, que caracterizou seu primeiro livro, nem o rigor conceitual e construtivista, passa a marcar a produção de João Cabral de Melo Neto a partir de O Engenheiro (1945), se ajustavam ao momento literário brasileiro. A obra do poeta, analisada no contexto histórico, é uma contribuição original e inovadora à dos numerosos poetas que formavam a Geração de 45. Lamentavelmente, muitas vezes foram tentados esforços de interpretação crítica que insistiram na filiação literária do poeta àquele grupo, de fato preocupado com a forma, com o equilíbrio e com a disciplina verbal. A matriz ideológica da Geração de 45 parece ser o apelo à maturidade contido no ensaio “A Poesia em 1930”, bem como a avaliação derradeira, e algo sombria, que Mário de Andrade (1893-1945) apresentou na palestra “O Movimento Modernista”. Nesta última, o escritor paulista comenta “a liberdade da pesquisa estética” e “a estabilização de uma consciência criadora nacional”, duas conquistas essenciais do movimento artístico de que se tornou um dos principais representantes, a partir de 1922. Mas a sua lucidez também denuncia a existência de um “hiperindividualismo implacável” que o teria alienado de uma consciência político-social.2 Os meses finais da II Guerra Mundial haviam aprofundado a revisão do mestre modernista sobre o significado de sua obra de poeta, crítico e folclorista. E os poetas da Geração de 45 já combatiam aquela esplêndida liberdade trazida pelo verso livre, dando início, assim, a uma fase de agudo esteticismo na poesia. O formalismo técnico e alguns atributos retóricos eram a resposta, marcadamente artesanal, à possível irresponsabilidade dos poetas modernistas, muitos dos quais acostumados ao poema-piada ou à ênfase nos aspectos exóticos e regionais da cultura brasileira. Ao criticarem as facilidades trazidas pela revolução modernista, os poetas da Geração de 45 não queriam restaurar apenas a forma, mas também o assunto da poesia, classicizando-o, tornando-o mais elevado e culto, vinculando-o a um vocabulário de tendências espiritualistas e filosofantes. Daí que muitos críticos tenham preferido termos como neoclassicismo, neoparnasianismo e antimodernismo para definir um movimento retrógrado de reação.

Em João Cabral de Melo Neto surgem evidentes a preocupação com a forma do poema, com a contenção e metrificação do verso, e mesmo com o intelectualismo. Porém, um elemento desencadeia o seu afastamento definitivo do ideário da Geração de 45: a crítica implícita à idéia de uma essência da poesia. A leitura que o poeta pernambucano faz do Modernismo não é de rejeição do regionalismo, mas de celebração dos seus traços peculiares de alcance universal. A sua obsessão pela forma não é de natureza conservadora ou de impulso restaurador da ordem, mas de apreensão intelectual das unidades da palavra, do verso e da estrofe, como se o poeta estivesse construindo o seu poema na forma de um conjunto visual. Mais importante, será permanente a “crítica da razão poética”3 em sua obra, quase uma metapoética realizada à base de imagens obsessivas e “idéias fixas”, que questionam de modo radical os elementos constitutivos da poesia, como, por exemplo, a metáfora e o eu lírico.

Uma vez consideradas essas observações iniciais, recuperem-se, aqui, a idéia de “sueño dirigido” e o tardio episódio surrealista de Pedra do Sono. O livro de estréia do poeta apresenta marcas de época, não necessariamente as escritas por João Cabral de Melo Neto, que as reedições recentes não permitem mais consultar. Não se trata da figura humana, como que delineada por apenas um traço, do vanguardista Vicente do Rego Monteiro (1899-1970), inscrita na primeira edição do livro; mas sim do pequeno prefácio assinado pelo crítico Willy Lewin (1909-1971), um texto de lembrança delicada do convívio de duas pessoas que chegaram “a um ponto quase extremo de entendimento poético” e que eram dadas a “certas conversas exquisitas [sic], certas extranhas [sic] proposições.”4 Quais eram essas esquisitices e estranhezas? Uma delas parece girar em torno “do valor e da ressonância dos vocábulos isolados”, bem como da “transfiguração (de ordem inteiramente mágica) adquirida pelas palavras no poema.” A evocação dessas conversas faz crer que o surrealismo praticado por João Cabral de Melo Neto nada tem a ver com qualquer apego aos princípios da escrita automática ou com o insondável do sonho e do inconsciente: o poeta, ainda que presumivelmente influenciado pelos escritores franceses e por uma fase do modernista brasileiro Murilo Mendes (1901-1975), estava de fato testando uma linguagem, como que forçando a sua sensibilidade de poeta ao jugo de uma teoria, a fim de conhecer o seu resultado. O que corrobora uma observação do crítico Antonio Candido publicada à época daquele livro, apesar de provocada por outro escritor: “No Brasil o surrealismo, além de ginástica mental, só pode ser compreendido como uma contribuição técnica, nunca como uma concepção geral do pensamento e da literatura, à maneira por que é cabível na Europa.”5 O falso surrealismo do poeta mais se assemelha a um surrealismo sob contenção, dominado por uma irrefreável tendência à ordem, como “Espaço Jornal” e “Composição”:

Frutas decapitadas, mapas,

Aves que prendi sob o chapéu,

Não sei que vitrolas errantes,

A cidade que nasce e morre,

No teu olho a flor, trilhos

Que me abandonam, jornais

Que me chegam pelas janelas,

Repetem os gestos obscenos

Que vejo fazerem as flores

Me vigiando em noites apagadas

Onde nuvens invariavelmente

Chovem prantos que eu não digo.

Raramente, nos livros posteriores a Pedra do Sono, o poeta permitirá palavras típicas do vocabulário poético, como “prantos”, ou lugares-comuns como os versos “No teu olho a flor” e “Repetem os gestos obscenos”, que flagram um desleixo com a linguagem que será em breve inadmissível em sua composição poética. Também o emocionado eu do poeta será eliminado em favor do surgimento de um observador da poesia, que mal se revela, porém disseca e analisa a matéria de que se ocupa. Mas os flagrantes delitos da estréia se incorporam a um conjunto de preocupações que, a partir de então, será bem repetido: por exemplo, os poemas “A André Masson” e “Homenagem a Picasso”, que iniciam a série literária de poemas dedicados a artistas plásticos e a comentários críticos sobre pintura e escultura. É consensual, entre os críticos do poeta, que em Pedra do Sono já predominam as imagens visuais, a ênfase no olhar, como se pode ler em “Poema”, o primeiro do livro, e “Os Olhos”, cujo verso final, atenuado pelos parêntesis, aproxima a visão perceptiva de uma referência mental:

(Os olhos ainda estão muito lúcidos)

O interesse de João Cabral de Melo Neto por uma teoria do poema encontrou na poesia de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) matéria para intensa e decisiva reflexão. O poeta mineiro já havia publicado Alguma Poesia (1930), Brejo das Almas (1934) e Sentimento do Mundo (1940): dentre os poetas do Brasil, foi quem mais causou impacto no jovem que estreara com Pedra do Sono, afinal dedicado ao mestre. Carlos Drummond de Andrade compunha, na sua fase inicial, uma poesia preocupada com temas prosaicos e objetivos, e vazada em linguagem coloquial, não raro com ironia e humor. Com distanciamento estratégico, foi capaz de descrever a província sem que se pressentisse qualquer regionalismo do tipo sentimental: ao registrar a “vida besta” do interior do país, como fez em “Cidadezinha Qualquer”, apenas investigava as angústias da transição para o ambiente urbano e moderno, marcado pela velocidade, ao qual também faltaria razão e sentido, como se lê numa estrofe do célebre “Poema de Sete Faces”, em instantâneo cinematográfico captado pela audiência solitária do poeta:

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.6

Carlos Drummond de Andrade ainda foi capaz de traduzir paisagens e pessoas para linguagem mais moderna, o que tornou possível, para João Cabral de Melo Neto, a própria poesia que desejava fazer. Palavras nunca antes escritas e lidas nos poemas tradicionais abriram inesperadas possibilidades ao poeta estreante que buscava sua linguagem pessoal. Ela poderia existir, por exemplo, na surpreendente escolha vocabular e na composição da primeira estrofe de um poema como “Casamento do Céu e do Inferno”:

No azul do céu de metileno

a lua irônica

diurética

é uma gravura de sala de jantar.7

Ou então estaria presente na consciência do poeta-homo faber que compõe o seu poema, como num quadro em que os elementos são ordenados com clareza, como em “Construção”, em que pese a nota irônica e imprevista do último verso:

Um grito pula no ar como foguete.

Vem da paisagem de barro úmido, caliça e andaimes hirtos.

O sol cai sobre as coisas em placa fervendo.

O sorveteiro corta a rua.

E o vento brinca nos bigodes do construtor.8

Assim também se construiu a poesia nova que interessava a João Cabral de Melo Neto. A recente publicação da correspondência entre os dois poetas confirmou, por sua vez, a preeminência de Carlos Drummond de Andrade sobre o autor de Pedra do Sono, que foi um discípulo consciente do que o mestre vinha escrevendo e da necessidade que tinha de superar aquela atitude poética, o que finalmente aconteceu. Em carta de novembro de 1941, João Cabral de Melo Neto escreve do Recife ao poeta que vivia na então capital do Brasil, o Rio de Janeiro: “Sinto que não é esta a poesia que eu gostaria de escrever; o que eu gostaria é de falar numa linguagem mais compreensível desse mundo, de que os jornais nos dão notícia todos os dias, cujo barulho chega até nossa porta.”9 Nove anos depois, já em Barcelona, o poeta pernambucano envia carta na qual reconhece: “porque muitas das coisas que eu lhe diria são coisas que aprendi de você, naquelas nossas conversas, em que eu me encastelava num racionalismo esquemático e radical (que hoje compreendo ser onanista inteiramente).”10 Conflitivas como possam ter sido algumas discussões entre os dois poetas, deve-se reconhecer que Carlos Drummond de Andrade foi o mestre receptivo e o interlocutor estético que deu forma à personalidade literária de João Cabral de Melo Neto, com influência até mesmo em alguns aspectos da psicologia do poeta mais jovem. Ao escritor de “No Meio do Caminho”, “Soneto da Perdida Esperança” , “Os Ombros Suportam o Mundo” e “Mãos Dadas” estão dedicados os livros Pedra do Sono e O Engenheiro, e ainda um poema deste último livro: cada um daqueles poemas citados terá provocado, no poeta pernambucano, considerável transformação perceptiva, seja em relação à materialidade da poesia, seja na expressão do ceticismo e da dissecação analítica, seja na lucidez permanente e na consciência do compromisso do poeta com o tempo presente. Desse conjunto didático que marca o período de formação de João Cabral de Melo Neto resultará não apenas o poeta mais moço que teoriza e escreve metapoemas, mas também o maior poeta social da sua época. A influência maciça e determinante de Carlos Drummond de Andrade não se restringe a lições de poesia que conformam os poemas iniciais de Pedra do Sono e O Engenheiro, que João Cabral de Melo Neto agradece na forma de dedicatórias do poema que tem o nome do poeta mais velho no título. Escapou a alguns críticos, por exemplo, que Pedra do Sono é “o nome de uma pequena cidade do interior de Pernambuco”, como explica Willy Lewin no prefácio ao primeiro livro do poeta. “Brejo das Almas”, que deu o nome ao segundo livro de Carlos Drummond de Andrade, “é um dos municípios mineiros onde os cereais são cultivados em maior escala”, segundo esclarece a notícia de jornal que o poeta mineiro, por sua vez, reproduz no frontispício. E segue a notícia: “Não se compreende mesmo que fique toda a vida com o primitivo [nome]: Brejo das Almas, que nada significa e nenhuma justificativa oferece.”11 Os dois nomes, que unem o abstrato ao concreto, referem-se, assim, a cidades reais que só interessam pelos nomes poéticos e porque transmitem, com sutileza, a dimensão mítica da província em cada um.12

Em 1943, João Cabral de Melo Neto publica o poema em prosa “Os Três Mal-Amados”, espécie de desdobramento poético, na forma de monólogos de três personagens, do poema “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade, cujos três primeiros versos são:

João que amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

que não amava ninguém.13

O aproveitamento do poema por João Cabral de Melo Neto ocorre de maneira estranha: apenas os personagens masculinos possuem fala, cabendo às mulheres a função de objeto. Uma das mulheres, Lili, não tem, contudo, o seu nome mencionado por Joaquim. A rigor, e apesar de o poema original tematizar o desencontro entre pessoas e destinos, em “Os Três Mal-Amados” cada um dos homens se ocupa de um discurso sobre a subjetividade, sempre vinculado à percepção do poeta de Pedra do Sono. O que se tenta no poema é uma análise, vertida em linguagem poética, da relação sujeito-objeto, esta, por sua vez, também considerada em linguagem poética. Como anotou Antonio Carlos Secchin, “Não se pode negar a considerável similitude entre as concepções estéticas de Raimundo e aquelas que o poeta viria efetivamente a abraçar. Ocorre, porém, que, no período em que foi escrita a obra, todos os personagens refletiam, em graus diversos, traços localizáveis em Pedra do Sono;”14 A remissão do poema a “Quadrilha” seria dispensável, apesar do vínculo comum trazido pelo acaso, que uniu aqueles personagens por uma cadeia de desilusões amorosas. O que interessa a João Cabral de Melo Neto é examinar o fracasso do discurso de cada um dos personagens, afastados do objeto de atração no espaço e no tempo:

JOÃO:

Olho Teresa. Vejo-a sentada aqui a meu lado, a poucos centímetros de mim. A poucos centímetros, muitos quilômetros. Por que essa impressão de que precisaria de quilômetros para medir a distância, o afastamento em que a vejo neste momento?

RAIMUNDO:

Maria era a praia que eu freqüentava certas manhãs. (…)

JOAQUIM:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. (…)

JOÃO:

Olho Teresa como se olhasse o retrato de uma antepassada que tivesse vivido em outro século. Ou como se olhasse o vulto em outro continente, através de um telescópio. (…)15

E é, justamente, o fracasso do discurso que interessa ao poeta, na avaliação que faz da poesia já publicada na preparação para a poesia seguinte, a de O Engenheiro. “Os Três Mal-Amados” não perderá, assim, a característica de poema ambíguo que especula sobre a sua própria natureza ambígua, sobre o qual será difícil perceber consensos. Na análise do poema, Luiz Costa Lima indica que o poema “não passa de um único comentário em prosa” do poema drummondiano, e insinua que o poeta mineiro tem no personagem Joaquim o porta-voz da suas idéias. As “obsessões mallarmeanas” estariam concentradas em Raimundo, enquanto João seria a voz ou a persona de João Cabral de Melo Neto. Mas não há dúvidas sobre as intenções do poeta: “O autor se obriga a um exercício em prosa por não ser ainda capaz de dizer o que quer e como quer. Sua consciência do que deveria realizar poderia já ser aguda. Faltava-lhe, entretanto, o meio técnico, a praxis mesma de fazer.”16 O poema em prosa possui, assim, um valor estratégico: permite que o poeta pergunte à poesia o que se pode fazer (por exemplo, com a tensão entre a alta referencialidade e o devaneio onírico) e ainda revisa o livro anterior e prepara a nova etapa da sua poesia, mais planejada, mais consciente.

O “sueño dirigido” de João Cabral de Melo Neto completa a sua fase preparatória com a publicação de O Engenheiro: livro que expõe, até mesmo de maneira dramática, o embate do poeta com a matéria da poesia. Em O Engenheiro se apresenta, por exemplo, a oposição entre o sonho e o projeto, tudo carreado por uma intermitente meditação metapoética. O tenso confronto entre os elementos de subjetividade e de objetividade já se encontra, de modo nuclear, na citação do arquiteto Le Corbusier, que abre o livro: “…machine à émouvoir”. E o poeta opta por uma desconstrução gradativa da emotividade, já que esta não serve para o pleno conhecimento da linguagem. Ao final, idealiza um “mundo justo” em que o pensamento suplanta o sonho, como se lê no poema “O Engenheiro”:

A luz, o sol, o ar-livre

Envolvem o sonho do engenheiro.

O engenheiro sonha coisas claras:

Superfícies, tênis, um copo d’água.

O lápis, o esquadro, o papel;

O desenho, o projeto, o número:

O engenheiro pensa o mundo justo

Mundo que nenhum véu encobre.

(Em certas tardes nós subíamos

Ao edifício. A cidade diária

Como um jornal que todos liam

Ganhava um pulmão de cimento e vidro).

A água, o vento, a claridade,

De um lado o rio, no alto as nuvens,

Situavam na natureza o edifício

Crescendo de suas forças simples.17

É importante reter um princípio de legibilidade que será comum a boa parte da poesia de João Cabral de Melo Neto: uma espécie de ordenamento da paisagem, seja da paisagem natural ou da paisagem construída, que permite a leitura, a decifração, o entendimento. Nessa organização, o poeta modula, numerosas vezes, até mesmo a distância, permanecendo ora longe, ora perto do tema poético. Assim, todos os acontecimentos, mesmo os de natureza não-verbal, podem ser lidos: no poema, cita-se a “A cidade diária / Como um jornal que todos liam”, no qual o edifício se insere como a fabulação do engenheiro. Recorde-se, aqui, a importante observação de Jean-Paul Sartre de que a poesia é matéria próxima à pintura, à escultura e à música, pois “les poètes sont des hommes qui refusent d’utiliser le language.” O filósofo observa que, ao se concentrar nas palavras (como o pintor em relação às cores, e o músico aos sons), um poeta pode conferir à linguagem uma estrutura do mundo exterior.18 A idéia de composição, presente em “O Engenheiro” e em tantos outros poemas que tratam de temas pictóricos e visuais, inclui-se nesse princípio de legibilidade, que ordena os elementos para que estes se tornem compreensíveis, para que tenham significação. Nesse sentido, o edifício do engenheiro bem pode ser comparado ao livro do poeta: concebido como uma entidade de símbolos próprios que se ergue, com sua forma simples, no entorno natural que o cerca. Edifício e livro como construção, como obra que necessita de planejamento e execução sensata para se manter erguido. Para o poeta, nenhum edifício-poema pode ser emocional ou transmitir sentimentos exteriores às linhas que o definem: deve ser tomado como a coisa em-si, pela sua densidade e ocupação do espaço, pelo aspecto como que monolítico que o caracteriza na sua presença vital, comparada a um “pulmão de cimento e vidro”. A nítida e lúcida legibilidade do edifício-poema é capaz de desvendar o “Mundo que nenhum véu encobre”. O poema “O Engenheiro” resume, assim, o penoso processo da busca de uma expressão que traduza, o mais fielmente possível, o homo faber destituído do seu grave pendor subjetivo. Esse processo já havia sido anunciado no poema “Homenagem a Picasso”, do livro de estréia, em que também se expunham o visível e o invisível:

O esquadro disfarça o eclipse

Que os homens não querem ver.

Não há música aparentemente

Nos violinos fechados.

Apenas os recortes dos jornais diários

Acenam para mim com o juízo final.19

O tempo do homo faber, nos dois poemas, é o tempo cotidiano e diário, refletido nos jornais: a legibilidade, portanto, resulta de um processo de interpretação permanente, que desmistifica, com sua lucidez, a própria poesia. Em O Engenheiro, o poeta radicaliza sua percepção analítica, destituindo a poesia de valores antes consagrados, num processo de contínua exclusão: o que permanece, ao final, é o resíduo essencial, capaz de tudo converter a uma dimensão modelar. O que acontece, por exemplo, no poema “Os Primos”:

Meus primos todos

Em pedra, na praça

Comum, na rua

De nome indígena. (…)

Entre nossas pedras

(uma ave que voa;

Um raio de sol)

Um amor mineral,

A simpatia, a amizade

De pedra a pedra

entre nossos mármores

Recíprocos.20

O Engenheiro, com seus numerosos poemas metalingüísticos nos quais se expressa um sofrimento pela forma próximo à exaustão física, marca a decidida opção do poeta pela objetividade e pela concretude, em repúdio ao inconsciente e à informe espontaneidade que poderiam dominar o seu poema. A partir de então, João Cabral de Melo Neto passará a considerar o poema como um objeto de natureza racional, como construção lúcida, muitas vezes organizada e serial, contra os terrores da produção impensada. Em poemas como “A Lição de Poesia”, por exemplo, apresenta-se a luta diuturna do poeta com o papel em branco: surgem imagens de insônia e de vigília, como se houvesse soado, para o poeta, o alerta máximo, na expectativa de um combate. O poeta sabe que deve exercer total controle sobre sua criação, já que a folha de papel

(…) pode aceitar

Qualquer mundo.21

Nesse estado de alerta, o tempo passa: a “manhã consumida” e o “meio dia iluminado” e “a noite inteira” são desperdiçados em função da luta. Finalmente, o poeta mais uma vez se vê diante de um resíduo essencial, resultado do seu trabalho de seleção e depuração:

E as 20 palavras recolhidas

Nas águas salgadas do poeta

De que se servirá o poeta

Em sua máquina útil.

Com O Engenheiro, João Cabral de Melo Neto por fim atinge o centro essencial e obsessivo de suas preocupações: passará a repetir as

20 palavras sempre as mesmas

De que conhece o funcionamento (…)22

e terá encontrado, assim, os instrumentos que viabilizam a sua especulação poética. O “sueño dirigido” começa a se transformar no “riguroso horizonte” concebido por Jorge Guillén, que servirá de epígrafe para Psicologia da Composição (1947), livro que materializa as ambições críticas do poeta brasileiro.

(2) De Negação em Negação: o Rigoroso Horizonte

É notável como, a partir de Psicologia da Composição, João Cabral de Melo Neto demonstra consciência sobre o tipo de poesia que escreve e pretende desenvolver. Em 1948, em carta a outro poeta pernambucano, seu primo Manuel Bandeira (1886-1968), ele faz comentário significativo sobre o poema “O Bicho”: “Não sei quantos poetas no mundo são capazes de tirar poesia de um ‘fato’, como você faz. Fato que você comunica sem qualquer jogo formal, sem qualquer palavra especial: antes, pelo contrário: como que querendo anular qualquer efeito autônomo dos meios de expressão. E isso é tanto mais impressionante, porque ninguém mais do que você é capaz de tirar todos os efeitos da atitude oposta, isto é, do puro funcionamento desses meios. Você terá notado que meu ideal é muito mais este M. Bandeira do que aquele.” Trecho importante, porquanto demonstra que o poeta muito jovem não se inibe em esclarecer, ao poeta já celebrado e empossado na Academia Brasileira de Letras, o seu apego à “atitude oposta”: atitude que não privilegia o comentário lírico sobre os fatos, mas sim o “jogo formal”, o “efeito autônomo dos meios de expressão” e o “funcionamento” desses meios. Na mesma carta, o poeta se confessa obcecado “pelo problema da possibilidade de expressão pessoal numa seleção”, ou seja, com o conjunto mínimo de obras (de novo, a idéia de um resíduo essencial) que pode representar o composto irredutível da poesia, a sua inserção original e provocante. O poeta pretende, ainda, “fazer nossos melhores poetas falarem de si mesmos em termos artesanais” – sempre muito preocupado com os alicerces e os fundamentos de um poema. Sua curiosidade, portanto, não incide somente sobre o objeto terminado, mas também sobre o método utilizado, sobre as dificuldades técnicas existentes e sobre as fórmulas para ultrapassá-las.23 No mesmo ano, Carlos Drummond de Andrade já reconhecia, elogioso, em carta enviada ao amigo, que “sua poesia está adquirindo um valor didático (…), um caráter de prova límpida, de exemplo, que há de ser muito proveitoso para os rapazes desorientados de cá.”24

Com certeza, o poeta mineiro estava pensando, ao escrever aquelas linhas, no impacto produzido pelos três poemas longos que João Cabral de Melo Neto publicou num só livro, em 1947, por ele mesmo impresso: “Fábula de Anfion”, “Psicologia da Composição” e “Antiode”. O tríptico forma um concentrado discurso sobre a criação poética: núcleo das obsessões e da percepção do poeta sobre a gênese da poesia. Com tensa profundidade, o poeta transmite uma visão-do-mundo assentada na investigação do poema, na qual são considerados elementos como o rigor necessário à criação; a função perturbadora do acaso na criação; a relação entre a palavra e o real; a denúncia da tendência ao subjetivismo e à injustificável metaforização na atitude lírica. Marcadamente formais, desde então as preocupações do poeta determinaram rumos importantes à poesia brasileira, seja no surgimento do movimento concretista (por volta de 1957), seja em poetas como Sebastião Uchoa Leite (1935-) e, ainda mais recentemente, Frederico Barbosa (1961-), que foram e são explicitamente influenciados pelo conjunto de idéias e de questionamentos presentes naqueles três poemas. Estava certo Carlos Drummond de Andrade quando mencionou o “valor didático” e o “exemplo” que o seu amigo daria aos rapazes literatos, desorientados ou não.

Mas não apenas os poetas foram marcados pelos versos densos e graves de Psicologia da Composição: ensaístas e teóricos de literatura logo se detiveram na análise dos três poemas de João Cabral de Melo, interessados pela harmoniosa confluência da poesia e da crítica, e produziram vasto material que não deve jamais ser omitido, uma vez que depõe sobre um momento crucial da poesia do Brasil. Momento de cisão entre o formalismo, a que o poeta se viu atrelado, e o de qualquer outra tendência que não considerasse uma indagação acerca dos fundamentos do fazer poético.

Sobre “Fábula de Anfion”, o estudo pioneiro de Othon M. Garcia, ao estabelecer as diferenças entre aquele poema e o melodrama “Amphion” (1931), de Paul Valéry, menciona a obsessão do poeta brasileiro pelo “milagre da palavra criadora”, que se assemelha, na leitura do mito, ao processo maravilhoso que “fez com que se erguessem os muros de Tebas.”25 A lira é substituída, no poema de João Cabral de Melo, pela flauta, instrumento que soa tão-somente quando Anfion enfrenta o acaso. A sua Tebas é uma obra construída por forças que lhe fogem ao controle; e a cidade, símbolo do poema terminado, não transmite qualquer sentido de realização ao seu criador. Anfion começa, então (e assim termina o poema), um lamento diante da sua obra:

“Esta cidade, Tebas,

não a quisera assim

de tijolos plantada,

que a terra e a flora

procuram reaver

a sua origem menor: (…)

Uma flauta: como prever

suas modulações,

cavalo solto e louco?

Como traçar suas ondas

antecipadamente, como faz,

no tempo, o mar?

A flauta, eu a joguei

aos peixes surdo-

mudos do mar.”26

As pedras que constróem a cidade são as palavras que, juntas, fazem o poema. Othon M. Garcia recorda, valendo-se de outra citação do poeta francês, que João Cabral de Melo Neto tem fascínio pela idéia de arquitetura criada. Mais importante, o deserto estéril em que se encontra Anfion tem a mesma natureza mineral da página em branco: representa, assim, um vazio que clama pela criação. Atormentado, pois nenhuma paisagem, nem mesmo a do deserto, significa a completa esterilidade, o poeta-Anfion sofre com a conclusão da sua obra, resultado de insuficiente expressão artística. O acaso, identificado à inspiração, consegue enfim dar forma à cidade-poema, o que apenas aumenta a aflição do poeta, incapaz de manter controle sobre a sua criação: “O que o aflige é o ato de criar em si, a consciência do fazer, do “poiein”, a ânsia de extravasar em linguagem sentimentos e emoções, e idéias que são a sua visão do mundo.”27 “Fábula de Anfion” é, assim, um poema sobre o fracasso, antes mesmo de ser um poema sobre a criação: poema de admissão e reconhecimento da impossibilidade de traduzir, pela palavra, a emoção ou a idéia em toda a sua expressão. Impotência, angústia e agonia: são esses os sentimentos do poeta nas diversas etapas de formação do poema. O seu instrumento artístico, a flauta, não serve para alcançar o poema que deseja, e o poeta, então, o atira ao mar, para que esta se junte aos peixes na sua surdez e mudez.

Muitos poetas receberam a lição da “Fábula de Anfion” como o melhor exemplo da luta pela expressão, na qual a linguagem e a poesia são insuficientes e incapazes: estão, portanto, de acordo com a interpretação proposta por Othon M. Garcia, que identifica, no poema cabralino, o tópico da inania verba. Para o crítico José Guilherme Merquior, no entanto, tal percepção do poema considera a insuficiência da linguagem poética em dimensão absoluta, ou seja, como inerente à condição mesma da linguagem. Segundo ele, outra corrente de interpretação propõe a insuficiência em dimensão relativa e condicional, menos como deficiência da linguagem e mais como limitação da poesia, que poderia ser atenuada ou eliminada nos casos de engajamento político e de crítica social. O poeta estaria expressando sua tendência ao niilismo e seu ceticismo em relação à utilidade da poesia.28 Seria possível, contudo, uma terceira via filosófica para a compreensão do poema: um entendimento da luta travada por Anfion, que não acontece somente no plano lingüístico, ao deparar o acaso. José Guilherme Merquior repudia a separação entre o deserto (equivalente da esterilidade) e o acaso (equivalente da inspiração): a imprevisibilidade do processo poético engloba aqueles dois elementos e “suas oposições se metamorfoseiam em novas sínteses.” Nesse sentido, João Cabral de Melo Neto não teria feito, em “Fábula de Anfion”, uma simples exaltação do estado de alta consciência e vigilância, na construção do poema, contra os ataques do acaso. A sua visão seria “de uma dialética entre a lucidez e a inspiração”, segundo a qual “o acaso não é simplesmente objeto de repúdio”. “Seu combate é uma forma de integração.”29 Para o crítico, o poema simboliza algo maior do que a estrutura da linguagem em que parece estar enclausurado o poeta-Anfion: de fato, ao comentar a criação, acaba revelando o ser da criação, e “situa a empresa humana numa moldura ontológica”, na qual o acaso é assumido como ambivalência do tempo da existência – pois o problema do tempo é, enfim, o fulcro do poema, que exige e expõe uma meditação ética.30

Juntamente com “Fábula de Anfion”, os poemas “Psicologia da Composição” e “Antiode” têm outras implicações importantes para o conjunto dos livros do poeta, e ainda para os livros que virá a escrever: como notou Antônio Houaiss, o poeta manifesta, a partir da publicação do tríptico, uma “tendência para o extenso” contrária à tradição dos poemas que não ultrapassam o tamanho de uma página; ao mesmo tempo, o versejador faz “uso do instrumento mais apocopado, mais elíptico, em relação à densidade do conteúdo.”31 A sensível observação técnica do ensaísta revela a pretensão analítica do poeta, que procura, com base na extensão maior dos seus poemas, um modo de exaurir diversos ângulos do tema escolhido. Definitivamente afastada do surrealismo, a escrita do poeta é artiste, jamais automatique, e tende para uma visão predominantemente plástica e dissertativa. Por fim, a análise dos livros publicados até então pelo poeta revela uma intensa variação de atitude, não a indicar renovação ou progresso, mas sim a incansável disposição de João Cabral de Melo Neto para perquirir e examinar a própria poesia.32

Em “Psicologia da Composição” a luta pela expressão acontece desacompanhada da gravidade do mito, ainda que persistam os mesmos elementos agônicos: no poema se encontram a irradiação da folha branca, o acaso criador, o aspecto mineral da escrita:

Esta folha branca

me proscreve o sonho,

me incita ao verso

nítido e preciso. (…)

O poema, com seus cavalos,

quer explodir

teu tempo claro; romper

seu branco fio, seu cimento

mudo e fresco.

(O descuido ficara aberto

de par em par;

um sonho passou, deixando

fiapos, logo árvores instantâneas

coagulando a preguiça). (…)

É mineral o papel

onde escrever

o verso; o verso

que é possível não fazer. (…)

É mineral, por fim,

qualquer livro:

que é mineral a palavra

escrita, a fria natureza

da palavra escrita. (…) 33

Foram muitos os que filiaram o trabalho de exclusão de elementos, praticado por João Cabral de Melo Neto, à didática da anulação e do niilismo de poetas como Stéphane Mallarmé e Paul Valéry. O zelo pela descrição e a ênfase nos substantivos caracterizam os poemas e as imagens daqueles escritores. Mas apenas Luiz Costa Lima tratou longamente da relevância de Jorge Guillén (1893-1984) para o poeta brasileiro. Em nenhum caso das influências recebidas, como salienta o estudioso, se pode afirmar que João Cabral de Melo Neto seja seguidor ou discípulo das tendências consolidadas por aqueles poetas. Ao contrário, identifica-se até mesmo uma “’traição’ do poeta brasileiro” em relação, por exemplo, ao ideal de poesia pura, típica do simbolismo francês, que é transformado em “ideal do poema como construção.”34 A presença de Jorge Guillén na poesia cabralina, a partir da epígrafe que serve a um livro decisivo, prolongaria a influência dos poetas franceses, conferindo-lhe uma “presentificação plenificante” e um “registro do esplendor objetivo.”35 É mesmo possível que Jorge Guillén tenha sido uma influência considerável para a poesia erotizada que João Cabral de Melo Neto só escreverá anos depois do seu tríptico: vale comparar, por exemplo, um poema como “El Manantial”, do poeta espanhol, com a bela descrição contida no poema “Imitação da Água”, publicado em Quaderna:

De flanco sobre o lençol

paisagem já tão marinha,

a uma onda deitada,

na praia te parecias. (…)

Uma onda que guardasse

na praia cama, finita,

a natureza sem fim

do mar de que participa, (…)

mais o clima de águas fundas

a intimidade sombria

e certo abraçar completo

que dos líquidos copias.36

A influência de Jorge Guillén será propagada não apenas à curta dicção erótica do poeta brasileiro, mas também à sua visão exemplarmente concreta. Compare-se, lado a lado, trechos do curto poema “Los Nombres” e trechos da parte VII de “Psicologia da Composição”, apenas como amostragem de uma percepção, francamente fenomenológica, que se repete em muitos outros poemas:

Albor. El horizonte São minerais

Entreabre sus pestanas as flores e as plantas,

Y empieza a ver. ¿Qué? Nombres. as frutas, os bichos,

Están sobre la pátina quando em estado de palavra.

De las cosas. La rosa É mineral

Se llama todavía a linha do horizonte,

Hoy rosa, y la memoria nossos nomes, essas coisas

De su tránsito, prisa, feitas de palavras.

prisa de vivir mais. (…) É mineral, por fim,

qualquer livro:

¿Y las rosas? Pestañas que é mineral a palavra

Cerradas: horizonte escrita, a fria natureza

Final. ¿Acaso nada?

Pero quedan los nombres.37 da palavra escrita.38

No poema de Jorge Guillén, como em tantos outros da sua lírica, predomina um sentido visual. Mas a visão, em “Los Nombres, está associada ao tempo – e, mais exatamente, ao período entre a manhã e a noite. Antes mesmo de ver as coisas e a rosa, realidades que a luz vai descobrindo, o horizonte (que ilude a persona do poeta) vê os nomes, nomes que resistem ao tempo (“Están sobre la pátina / De las cosas”) e nunca desaparecem, mesmo quando surge a noite final e nada se vê: “(…) ¿Acaso nada? / Pero quedan los nombres.” O tema da flor que simboliza a passagem fugidia do tempo é um topos dos mais comuns da poesia ocidental – seu maior exemplo ainda se associa ao tema do carpe diem, na tradição transmitida por Horácio e por Pierre de Ronsard. Em “Los Nombres”, porém, existe a convicção de que os nomes das coisas prolongam-se no tempo, duram bem mais do que as coisas que nomeiam, persistem na paisagem e causam mais funda impressão: “(…) La rosa / Se llama todavía / Hoy rosa, (…)”, e essa qualidade de resistência do nome da flor supera a transitoriedade da coisa em-si, que Jorge Guillén apresenta em verso inesquecível, “(…) la memoria / de su tránsito, (…)”, associada, com a urgente repetição da palavra pressa, à avidez pela vida: “(…) prisa / Prisa de vivir más.” Na “Pequena Ode Mineral”, João Cabral de Melo Neto já havia associado a noção de ordem à natureza mineral, dando a esta o sentido temporal de permanência:

Procura a ordem

Que vês na pedra:

Nada se gasta

Mas permanece.39

Mas é na “Psicologia da Composição” que a natureza mineral se estende a toda e qualquer natureza (papel, flores, plantas, frutas, bichos etc.), e contamina até mesmo o instrumento primordial do poeta, aquele com o qual o poeta pode nomear: a palavra. No poema espanhol e no brasileiro a palavra e os nomes são realidades totalizantes, que tudo tocam e transformam, até mesmo a dimensão do tempo: representar passa a ser, assim, um ato volitivo da nomeação, que na sua asséptica e “fria natureza” prescinde dos estados emocionais e de toda subjetividade. No poema de Jorge Guillén, tudo acontece quando o horizonte “empieza a ver”; no de João Cabral de Melo Neto, quando o poeta começa a escrever “o verso / que é possível não fazer.” Toda a profundidade está, pois, na perspectiva da visão, bem como na evocação da palavra substantiva: rosa sem perfume e sem divagações sobre o vermelho, exposta apenas ao tempo.

Coincidentemente, é o símbolo da poesia como flor que servirá para o ataque que o poeta brasileiro perpetra com “Antiode” – ataque reforçado no subtítulo: “(contra a poesia dita profunda)”. A flor vai sendo gradativamente desnudada de suas adjetivações mais freqüentes, sem que seja necessário mencioná-las, e se aproxima cada vez mais de uma materialidade surpreendente, em permanente evolução, como numa cadeia vital cujo objetivo é demonstrar a excrescência de qualquer sentimentalismo:

Poesia, te escrevia:

flor! conhecendo

que és fezes. Fezes

como qualquer,

gerando cogumelos

(raros, frágeis cogu-

melos) no úmido

calor de nossa boca.40

Desadjetivada, contrastada à paisagem e à página em branco, a flor-poesia de João Cabral de Melo Neto sofre a reificação que o poeta lhe impõe, convertendo-se, assim, naquele resíduo essencial que é o nome ou a palavra. (A transcrição que se faz de uma quadra da seção D do poema vem acompanhada, agora, do trecho já conhecido de “Los Nombres”, apenas para que se visualize uma significativa similaridade da tendência à coisificação nos dois poetas):

Flor é a palavra (…) La rosa

flor, verso inscrito Se llama todavía

no verso, como Hoy rosa, y la memoria

as manhãs no tempo.41 De su tránsito, prisa,

prisa de vivir más.

O processo comparativo poderia ser facilmente estendido a outros poetas, dos quais João Cabral de Melo Neto, em vez de recuperar temas, prefere analisar a despoetização. Nesse sentido, ele trabalha muitas vezes o seu poema como um artista plástico que, em produção serial, estuda os princípios de composição do modelo original. Considere-se, como ilustração, a seqüência de quadros de Pablo Picasso inspirada no “Las Meninas”, de Diego Velázquez, do qual o artista moderno aproveita informações importantes para a sua pintura. Existe o mesmo interesse pela composição no poeta brasileiro, que geralmente menciona em seus poemas, em reconhecimento, a influência ou o processo determinante. De Rainer Maria Rilke, por exemplo, privilegia a produção reunida no livro Neue Gedichte (Novos Poemas, 1907-1908), do período marcado pela influência do escultor Auguste Rodin. Um poema como “Spanische Tänzerin” (“Dançarina Espanhola”) tem impressionante semelhança com a primeira parte de “Estudos Para Uma Bailadora Andaluza”, em que o poeta também compara os movimentos da bailarina aos do fogo. Nas demais cinco partes do poema, ocorre um desdobramento e um intercâmbio de imagens, como se estivessem sendo testados novos elementos para a comparação com a bailadora: na parte 2, com a imagem da cavaleira e da égua; na parte 3, com o trabalho de telegrafista; na parte 4, com o camponês e a árvore; e assim sucessivamente, numa série de variações bem comum a um estudo pictórico. O poeta de língua alemã, com seus Diggendichte (poemas-coisa) e sua disciplina de construção do poema haurida da observação de esculturas, representa também uma influência a considerar na poesia cabralina, ainda escassamente estudada, tanto quanto a de Jorge Guillén. O que é mais admirável quando o poeta pernambucano registra sua dívida em “Rilke nos Novos Poemas”, no qual confessa, junto com o homenageado,

Preferir a pantera a anjo,

condensar o vago em preciso:42

Seja como for, o tríptico de João Cabral de Melo Neto resume, radicalmente, todo o impasse da sua poesia e todas as tentativas de que o poeta se valeu para confirmar o fracasso da empresa poética e, paradoxalmente, as saídas possíveis.

(3) A Composição Social: o Salto Dentro da Vida

É um exemplo de ironia a certeira observação de Angel Crespo e Pilar Gomez Bedate sobre o longo poema “O Cão Sem Plumas”: a de que “la ressaca se ha devuelto” a flauta que o poeta havia atirado ao mar, recolhida “en las águas de un río nordestino: el Capibaribe.”43 De fato, João Cabral de Melo, terminada a fase em que perscruta a poesia com instrumentos analíticos, e questiona os seus meandros, toma nova atitude – dessa vez, voltando-se para uma extensa descrição de paisagens e situações que termina por formar um ambiente social. Modernamente, o rio Capibaribe, e também a geografia do seu entorno, está entranhado na memória poética: Manuel Bandeira, em poemas como “Mangue” e “Evocação do Recife”, descreve a forte atividade comercial de homens e máquinas nas docas da capital pernambucana, bem como as lembranças que se perpetuaram desde a infância, como as cheias do rio, e o próprio fluir das águas; Joaquim Cardozo (1897-1978), por sua vez, denominado de “o poeta do Capibaribe” na dedicatória de “O Cão Sem Plumas”, atribui uma prolongação da sua maneira de ser à existência do rio:

Nasci na várzea do Capibaribe

De terra escura, de macio turvo,

De luz dourada no horizonte curvo

E onde, água doce, o massapê proíbe.

Sua presença para mim se exibe

No seu ar sereno que inda hoje absorvo, (…)44

No seu tardio livro de estréia, Poemas (1947), marcado por seguidas menções ao Recife, uma composição como “Terra do Mangue” traz, com precisão, a predominância do sentido visual integrada ao sentimento da terra, como fará, mais tarde, o outro poeta:

A terra do mangue é preta e morna

Mas a terra do mangue tem olhos e vê.

Vê as nuvens, o céu

Vê quando sobe a maré

Vê o Progresso também45

“O Cão Sem Plumas” está dividido em quatro seções: as duas primeiras subintituladas “Paisagem do Capibaribe”, e as duas finais, “Fábula do Capibaribe” e “Discurso do Capibaribe”. Ao longo do poema, o poeta não hesitará em repetir imagens e em expressar obsessões à medida que descreve o rio. O eixo central do poema está construído com a idéia da relação comparativa entre “o rio” e “um cão”, “um cão sem plumas”:

§ A cidade é passada pelo rio

como uma rua

é passada por um cachorro;

uma fruta

por uma espada. (…)

§ Aquele rio

era como um cão sem plumas.46

A terra escura e preta e morna, e o mangue “de macio turvo” daqueles dois poetas citados, se materializa em João Cabral de Melo Neto com maior densidade e maior espessura, em passagens que se afastam da pura lembrança pessoal; com imagens de fecundação, alcançam o coletivo tocado pelo rio:

§ Entre a paisagem

(fluía)

de homens plantados na lama;

de casas de lama

plantadas em ilhas

coaguladas na lama;

paisagem de anfíbios

de lama e lama. (…)

§ Mas antes de ir ao mar

o rio se detém

em mangues de água parada.

Junta-se o rio

a outros rios

numa laguna, em pântanos

onde, fria, a vida ferve.47

Todo o poema resulta de séries de imagens de oposição que obcecadamente se repetem e, ao mesmo tempo, de um trabalho de depuração dos poucos elementos que o estruturam: em “O Cão Sem Plumas”, o poeta exaure palavras como “rio”, “cão”, “fruta”, “flor”, entre algumas outras necessariamente relacionadas à natureza do rio (“líquido”, “água”, “lama”). A poesia que se deseja descritiva e realista e, mais adiante, de alusões sociais, não perde o vezo formal que procura, a todo custo, evitar a metáfora e pesquisar elementos reduzidos, que são ampliados apenas nas suas correlações substantivas. O rio carrega em suas águas as imagens contraditórias da vida e da morte, que afinal se integram quando passam a desembocar na existência daqueles que o margeiam: de frente para o rio se encontram “os homens sem pluma”; “de costas para o rio”, por sua vez, “’as grandes famílias espirituais da cidade’”, às quais o poeta alude com aspas retóricas e irônicas. O progresso visto pelo mangue, tal como no poema de Joaquim Cardozo, é também a estagnação das águas comparada à daquela classe dirigente que se apropria da riqueza gerada pelos engenhos de cana-de-açúcar e pelas usinas:

§ Algo da estagnação

dos palácios cariados,

comidos

de mofo e erva-de-passarinho.

Algo da estagnação

das árvores obesas

pingando os mil açúcares

das salas de jantar pernambucanas,

por onde se veio arrastando.48

A partir de “O Cão Sem Plumas”, João Cabral de Melo passa a incluir em sua poesia, definitivamente, o tema nordestino – e, com maior precisão, os temas de Pernambuco e da sua capital, Recife. Surgem, a partir de então, as referências à história local e ao ciclo econômico baseado na cultura açucareira, que formou as grandes famílias daquela região; o poeta, representante decadente de usineiros, transformado em funcionário público, passará a compor o quadro de antagonismos sociais e econômicos que caracterizará a paisagem e os personagens que se formam como resultado da exploração da cana-de-açúcar: o senhor de engenho e o retirante, o canavial e o latifúndio, o dinheiro e a fome. A sua poesia ganha, a partir de então, um “assunto social”, a ser tratado, por sua vez, com o mesmo aparato analítico, destituído de sentimentalismo ou de ímpetos metafóricos. Define-se, também, juntamente com a prática do poema longo, um tipo de composição poética que tenderá para a dramatização, cujo ponto mais alto será “Morte e Vida Severina”, de 1955. Antes, porém, será necessário observar que o poeta perfaz, de posse do seu “assunto social”, uma revisão da geografia e da história da sua terra natal, com profundidade igual à demonstrada na revisão que já apresentara dos elementos constitutivos da poesia.

Esse sentido de revisão, tão presente em “O Cão Sem Plumas”, caracteriza integralmente o poema “O Rio” (1954), que é, como indicou o poeta no seu subtítulo, uma “relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife”. Assumidamente descritivo, o poema de João Cabral de Melo Neto apresenta, em epígrafe, uma citação de Gonzalo de Berceo (c.1198-c.1264): “Quiero que compogamos io / e tú una prosa”. Esses versos tão simples possuem, contudo, importantes implicações: primeiramente, salientam o sentido de composição dos poemas (de todos os poemas) do poeta brasileiro, que bem pode ser o do trabalho de depuração com as palavras ou, como sugere o título da série de poemas “Paisagens com Figuras” (1955), a observação da paisagem e das pessoas à maneira de uma composição plástica, de caráter visual. Uma natureza viva, em vez de uma natureza morta. A citação do poeta medieval espanhol também indica, na sua menção à prosa, a opção pelo poema narrativo, altamente descritivo, que serve ao poeta para tratar a viagem e o “assunto social” da sua nova fase com eficiente sobriedade de recursos. “O Rio” revela, ademais, um aprofundamento técnico que deve muito ao contato do poeta com a literatura espanhola. No poema, não utiliza a cuaderna vía, ao contrário do poeta que escolhe para sua epígrafe. Mas o uso das quadras e, mais ainda, do numeral 4 terão forte repercussões na obra de João Cabral de Melo Neto, chegando mesmo a representar uma espécie de obsessão matemática. Por enquanto, a cuaderna vía praticada pelo poeta brasileiro se resume à alusão das rimas em –ar que se encontram na primeira estrofe do poema. Gonzalo de Berceo teria transmitido ao poeta não apenas a configuração de um estilo narrativo e culto, mas também uma tendência explícita à oralidade. Escrito em metros regulares e com palavras pedestres, “O Rio”, bem mais do que “O Cão Sem Plumas”, apresenta uma notável opção pela simplicidade do ritmo popular narrativo, apesar de ainda não ser composto totalmente por heptassílabos, como é comum à literatura de cordel brasileira, esta, por sua vez, que terá influência em “Morte e Vida Severina”. Lembre-se que Gonzalo de Berceo não era um padre formalmente vinculado à carreira religiosa – e sim um devoto associado, na condição de padre secular, às tarefas de administração e de notaria de um monastério em Rioja. João Cabral de Melo Neto, que encontrou nas estatísticas e nos relatórios que lia, como funcionário administrativo e, mais adiante, como diplomata, a inspiração para alguns dos seus poemas sociais, terá encontrado no poeta espanhol uma impressionante tentação pela imagem objetiva e concreta. O exemplo de mester de clerecía de Gonzalo de Berceo bem poderia converter-se num mester de claridad praticado pelo poeta pernambucano na sua lúcida e analítica descrição da realidade. Anos depois, o poeta salientará, em “O Catecismo de Berceo”, a disciplina e o rigor de

fazer com que a palavra leve

pese como a coisa que diga49,

seguindo uma profissão de fé que tenta o milagre de anular a distância entre a palavra e a coisa.

A lucidez do Capibaribe-poeta em viagem, no poema “O Rio”, permite que se aproximem as paisagem e as figuras, como se estas formassem um continuum, a demonstrar a dependência dramática do homem nordestino da sua escassa natureza local, que o ameaça com a morte:

Os rios que eu encontro

vão seguindo comigo.

Rios são de água pouca

em que a água sempre está por um fio.

Cortados no verão

que faz secar todos os rios.

Rios todos com nome

e que abraço como a amigos.

Uns com nome de gente,

outros com nome de bicho,

uns com nome de santo,

muitos só com apelido.

Mas todos como a gente

que por aqui tenho visto:

a gente cuja vida

se interrompe quando os rios.50

O trecho se mantém um tanto apegado à rima monótona, apesar de toante e irregular, que caracteriza o romance espanhol (comigo / fio / rios / amigos / bicho / apelido / visto / rios). Tecnicamente, é de se notar os cortes propositais efetivados pelo poeta para transmitir, com forte tensão estilística, a unir forma e conteúdo, a vida interrompida das pessoas, quando a seca faz os rios desaparecerem, como se lê abruptamente nos versos “em que a água está por um fio. / Cortados no verão / que faz secar todos os rios”, e também no belo final: “a gente cuja vida / se interrompe quando os rios.” A paisagem nordestina, de seca e privação, oferece ao poeta algo como uma nova página branca e um novo deserto, nos quais pode exercitar o processo redutor que caracteriza a sua poesia:

Vou na mesma paisagem

reduzida à sua pedra.51

A redução é, paradoxalmente, um elemento gerador na poesia de João Cabral de Melo Neto – com características oniscientes, que tanto atuam no aspecto artesanal do poema (escolha e composição) quanto na seleção de temas e assuntos. Em “O Rio” a redução é um processo a um só tempo vital e fatal, que transforma as paisagens e as figuras, segundo um princípio devorador pronto para exprimir, com dramaticidade e precisão, uma didática sociológica:

Vira usinas comer

as terras que iam encontrando;

com grandes canaviais

todas as várzeas ocupando.

O canavial é a boca

com que primeiro vão devorando

matas e capoeiras,

pastos e cercados;

com que devoram a terra

onde um homem plantou seu roçado;

depois os poucos metros

onde ele plantou sua casa;

depois o pouco espaço

de que precisa um homem sentado;

depois os setes palmos

onde ele vai ser enterrado. (…)

Vi homens de bagaço

enquanto por ali discorria;

vi homens de bagaço

que a morte úmida embebia.

E vi todas as mortes

em que esta gente vivia:52

“O Rio” é tanto mais um “assunto social” tratado em poesia quanto uma expressão de extrema solidariedade, na qual o poeta alterna momentos em que é expectador distante, que vê e analisa, com momentos em que abraça a paisagem e os rios, cada um com sua psicologia, e viaja junto com a gente retirante e empobrecida, forçada a migrar pelas usinas da região:

Ao entrar no Recife,

não pensem que entro só. (…)

entram comigo rios

a quem o mar chamou, (…)

e entra essa gente triste

a mais triste que já baixou,

a gente que a usina

depois de mastigar, largou.53

O mundo visto durante a viagem no Capibaribe é de desencanto e desolação, na qual se flagra a “gasta aristocracia” da região em irreversível desfecho, tocada pela alienação e obsolescência. No lado oposto se encontra “a gente / de existência imprecisa”, que subsiste no chão de lama, mistura ambivalente de água e terra: o retirante, assinalado pela diáspora e pela fome; tal como a matéria carregada pelo rio, em estado de putrefação, confundido “entre coisas de lixo e de despejo”.

Em “O Rio”, fixam-se as imagens de uma viagem individual, que impressiona as retinas do poeta e o desperta para a tragédia da miséria nordestina, enquanto o barco desce o Capibaribe e as cidades desfilam à sua frente. Em “Morte e Vida Severina”, o mais célebre dos seus poemas, muda-se o ponto de vista, embora persista a viagem: dessa vez, contudo, trata-se de uma viagem de fuga, não de observação; e de uma viagem que não é mais feita pelo rio, e sim pelo retirante, que faz a sua declaração de trânsito:

Mas, para que me conheçam

melhor Vossa Senhorias

e melhor possam seguir

a história de minha vida,

passo a ser o Severino

que em vossa presença emigra.

Severino é um personagem coletivo, a encarnação de milhares de retirantes nordestinos que, tangidos pela desolação e pela fome, procuram vida melhor na capital: ele representa todos os “homens de bagaço” que apareceram em “O Rio”, e segue o curso do Capibaribe rumo ao mar. “Morte e Vida Severina”, com os seus reincidentes encontros com a morte de tantos nordestinos iguais no destino fatídico, é certamente o maior poema social da moderna literatura brasileira. Na sua impactante descrição do destino do retirante encontram-se configuradas diversas denúncias sobre a exclusão do homem de seu meio pelas forças econômicas e produtivas: estão presentes, por exemplo, a impossibilidade de desenvolver a agricultura; o financiamento negado pelos bancos; e a distribuição desigual das terras. Naquela região, nenhuma atividade é lucrativa – à exceção das que estão diretamente dependentes da morte das pessoas. É o que diz a Severino, sem remorso, uma senhora que tem por profissão rezar pelos defuntos. O seu discurso profissional e o seu conhecimento do mercado são impressionantes, mescla de mórbida ironia em que a morte se revela uma atividade dinâmica e próspera:

– Como aqui a morte é tanta,

só é possível trabalhar

nessas profissões que fazem

da morte ofício ou bazar.

Imagine que outra gente

de profissão similar,

farmacêuticos, coveiros,

doutor de anel no anular,

remando contra a corrente

da gente que baixa ao mar,

retirantes às avessas,

sobem do mar para cá.

Só os roçados da morte

compensam aqui cultivar,

e cultivá-los é fácil:

simples questão de plantar;

não se precisa de limpa,

de adubar nem de regar;

as estiagens e as pragas

fazem-nos mais prosperar;

e dão lucro imediato;

nem é preciso esperar

pela colheita: recebe-se

na hora mesma de semear.54

Note-se, no trecho citado, tal como se leu na primeira estrofe de “O Rio”, a disciplina da redondilha maior e das rimas terminadas em –ar, que conferem, como sugeria a lição de Gonzalo de Berceo, a impressão de prosa que serve bem à narrativa do retirante. “Morte e Vida Severina” é um “auto de natal pernambucano”, de inspiração medieval: trata da história do nascimento de um Cristo – outro Severino sofredor – longamente antecedida pela vida (ou morte) do Severino que se apresentou no início do poema, depois de tentar, em vão, criar uma identidade diferente da dos demais Severinos pobres e famintos da sua região. É que proliferam no poema as imagens de uma vazia multiplicação, refletidas na aridez da terra, na fome do retirante, na morte dos que ficam e dos que fogem. O poema social é, de fato, uma especulação sobre a morte irreversível: pois, no sistema econômico a que se encontra atrelado, o retirante descobre que nem mesmo a sua tentativa de escapar ao destino comum dos Severinos deverá livrá-lo do resultado fatídico. Ao se aproximar de um cais do Capibaribe, descobre, com espanto, o seu destino, no momento emocionante em que se vê, afinal, desalienado da sua situação:

E chegando, aprendo que,

nessa viagem que eu fazia,

sem saber desde o Sertão,

meu próprio enterro eu seguia.55

Em que pese a permanente presença da morte no poema, é notável o recurso ao humor e à ironia de que se vale o poeta – francamente indicada a partir da inversão que se lê no título. No episódio em que o retirante encontra dois homens que transportam um defunto, é informado por um deles de que, pelo menos, o homem morto – assassinado a tiro por um proprietário de terras – não terá de fazer a caminhada de volta à casa. Além da explicação que lhe dá a afluente senhora rezadeira titular da região, o retirante também escuta a conversa de dois coveiros, que discutem as características e qualidades de diferentes cemitérios, a partir do segmento social que aqueles lugares costumam receber. Quando analisam o tipo de enterro que merece um retirante, concluem com realismo:

– Na verdade, seria mais rápido

e também muito mais barato

que os sacudissem de qualquer ponte

dentro do rio e da morte. (…)

– Mas o que se vê não é isso:

é sempre novo serviço

crescendo mais cada dia;

morre gente que nem vivia.56

Paralelamente ao humor, o poema exprime o sentimento de impotência não apenas em relação à morte dos retirantes, mas também diante da vida. Finalmente convencido de que o seu fim será o de todos os Severinos do lugar, o retirante pergunta a um carpinteiro, encarnação de José, pai de Jesus, se não seria melhor renunciar à vida, suicidando-se. Não há resposta à questão, mas sim o surgimento de outra vida, o filho de José, que interrompe o diálogo dos homens: é a vida por ela mesma, a vida como explosão, que justifica continuar existindo. Um processo sem qualquer otimismo ou esperança, puramente fundamentado na multiplicação como que espontânea do processo vital, como se ali atuasse a vontade irracional descrita por Schopenhauer, em moto-contínuo. É com essa nota de inevitabilidade o poema termina, infinitamente.

É com o trio de poemas sociais que João Cabral de Melo Neto “saltou para dentro da vida”: e trouxe, afinal, poderosos instrumentos de análise com que poderá rever a sua origem pernambucana e o seu trânsito por outros países, sobretudo a Espanha contida em Sevilha e Andalucía. O poeta atinge, assim, um nível de excepcional maturidade que lhe permite fazer do poema um exercício crítico e criativo, a ser praticado não apenas na geografia que sempre lhe interessou, mas também para a seleção de mais artistas e profissionais (como o toureiro Manolete), de mais obras e estilos que contribuem para a conformação de sua poesia sob controle.

(4) Duas Águas: Situações e Objetos

A intervenção crítica de que foi capaz João Cabral de Melo não se projetou somente nos seus temas poéticos: fixou-se também no modo de organizá-los. A reunir o volume das Poesias Completas (1968), o poeta, no mesmo ano em que entrou para a Academia Brasileira de Letras, não buscou o auxílio de prefácios elogiosos e de bibliografias exaustivas. Apenas eliminou poemas dos livros iniciais e fez pequenas alterações em alguns outros. Mais importante, apresentou o conjunto dos livros publicados até então em ordem decrescente, ou seja, de A Educação Pela Pedra (1966) até Pedra do Sono (1942). Lidos nessa ordem, os poemas como que demonstrariam, primeiramente, a forma conquistada pelo poeta, e permitiriam ao leitor realizar um exame retrospectivo dos demais. A possível estranheza da organização indicava, ao menos, que o poeta tinha preocupação em mostrar, sempre, a fase atual em que sua poesia se encontrava. Preocupação também manifestada na organização de outro livro, Duas Águas (1956), que igualmente reuniu a produção de João Cabral de Melo Neto. Ali, o poeta realizou uma intervenção de outro tipo, ao definir duas tendências visíveis, ou duas intenções, em sua poesia: “de um lado, poemas para serem lidos em silêncio, numa comunicação a dois, poemas cujo aproveitamento temático, quase sempre concentrado, exige mais do que leitura, releitura; de outro, poemas para auditório, numa comunicação múltipla, poemas que, menos que lidos, podem ser ouvidos.”57 Parece evidente que, assim, o poeta prolongava uma reflexão sobre a sua matéria poética, classificando para o leitor as diferentes “duas maneiras de apreensão” que poderiam existir. É notável como o imperioso controle que João Cabral de Melo Neto exerce sobre seus poemas procura também transmitir-se para a recepção: no projeto de evitar, radicalmente, os conteúdos da subjetividade, o poeta como que elimina a possibilidade de fazer jorrar, em sua obra, correntes diferentes daquelas que já não tenham sido canalizadas. A bifurcação, por sua vez, atende a critérios de muita sutileza, uma vez que não opõe grupos temáticos (por exemplo, o da poesia social e o da poesia formalista). O poeta prefere uma partição que leve em conta o esforço de concentração que se exige do leitor, separando os poemas que demonstram ênfase no método de composição (é o caso de “O Cão Sem Plumas”) daqueles que poderiam prestar-se até mesmo a uma leitura dramática (como “O Rio”).

Por delicado que tenha sido o divisor proposto, João Cabral de Melo Neto demonstrará, até nos seus livros derradeiros, preocupação com as “duas águas” da sua poesia. Haverá, a partir de Quaderna, ênfase em aspectos específicos, atenuações em outros aspectos, alternativamente, mas sempre com fidelidade a um projeto inicial que parece destinar os poemas à vertente dramática ou à vertente metalingüística, com suas inevitáveis ramificações. Seguindo outra proposta classificatória do poeta, será útil considerar as “situações e objetos” comuns a uma poesia que possui, afinal, um caráter altamente seletivo e didático, ainda que se apresente ao leitor como um ato prosaico e cotidiano, como faz crer o primeiro trecho do poema “Catar Feijão”:

Catar feijão se limita com escrever:

jogam-se os grãos na água do alguidar

e as palavras na folha de papel;

e depois, joga-se fora o que boiar.

Certo, toda palavra boiará no papel,

água congelada, por chumbo seu verbo:

pois para catar esse feijão, soprar nele,

e jogar fora o leve e oco, palha e eco.58

O poeta, portanto, tem pleno domínio das suas obsessões e conhecimento radical das operações que realiza para construir seu poema. Tanto assim que se permite até mesmo a auto-ironia, glosando, em outros poemas, os métodos de que se vale. É o que acontece, por exemplo, em “O Número Quatro”, de Museu de Tudo (1975): por estar presente nas numerosas quadras dos seus poemas; em dobro, nos versos de oito sílabas métricas; em múltiplos; e como princípio constitutivo de tantos poemas e livros, o número quatro ganha a pequena hommage (de natureza celebratória, como aconteceu com a aspirina, importante elemento na biografia do poeta). Como que a reforçar a voluntária intenção de escrever toda a sua poesia nos limites impostos pelas “duas águas”, João Cabral de Melo Neto menciona o uso constante que faz do “não-verso de oito sílabas”, que o induz a escrever o poema “em linha vizinha à prosa”. Tudo isso escrito num livro crepuscular, Agrestes (1985), num poema dedicado, no título, a um poeta da geração à frente da sua:

Você aqui reencontrará

as mesmas coisas e loisas

que me fazem escrever

tanto e de tão poucas coisas:59

A capacidade de humor do poeta, como já se notou, está muito vinculada à morbidez e a uma denúncia passiva da realidade social, de que o melhor exemplo continuará sendo “Morte e Vida Severina”. Também no longo “Congresso no Polígono das Secas” (1960) se percebe o travo persistente desse humor, geralmente relacionado ao comentário sobre a morte de um excluído social, eliminado pela absurda omissão da política pública. Trata-se, no entanto, de um humor truncado, como se feito em segredo, sem muita visibilidade – humor que não pretende, como numa anedota, quebrar ou interromper a ação: antes se integra a ela, como um discurso subliminar que lentamente emerge e aponta, decidido, o nonsense de uma situação. Mais presente do que a auto-ironia, quase sempre vinculada à tentação do poeta de falar sobre o seu ofício, é o humor mórbido que mais se salienta em sua poesia. Exemplo modelar dessa interação entre o humor e a morte se lê no poema “O Urubu Mobilizado”, no qual a ave carniceira, símbolo funesto de mau agouro, é subitamente convertida em funcionário exemplar, quando é chegado período da seca e, com ele, o da fome:

O urubu não retira, pois prevendo cedo

que lhe mobilizarão a técnica e o tacto,

cala os serviços prestados e diplomas,

que o enquadrariam num melhor salário,

e vai acolitar os empreiteiros da seca,

veterano, mas ainda com zelos de novato:

aviando com eutanásia o morto incerto,

ele, que no civil quer o morto claro.60

Lido com atenção o poema inteiro, percebe-se que o poeta logra reunir todos os personagens envolvidos com o drama da seca nordestina: não apenas o urubu, seu ícone incontestável, mas também a figura governamental do funcionário, que coopera, por sua vez, com os “empreiteiros da seca”, que lucram com as contribuições e subsídios enviados para amenizar a situação. Na segunda parte do poema, menciona-se ainda a “unção clerical” concedida pela ave, em sutilíssima alusão à Igreja. Por fim, o urubu converte-se em “convicto profissional liberal”, a exercer com grande desembaraço a sua profissão de aviar a morte alheia.

Num livro como Crime na Calle Relator (1987), o humor perde a sua dimensão tanatológica e passa, então, a se concentrar nos episódios anedóticos, nos causos peculiares que o poeta testemunhou ou que lhe foram contados nos diversos lugares em que morou. Ali, perde a contundência crítica, ainda que mantenha impávido o estado de alerta do observador.

Tão complexa quanto a extração do humor da poesia cabralina é a observação e decifração do seu erotismo. Antes da publicação de Quaderna, o ensaísta Othon M. Garcia pôde anotar, sem estar equivocado, que “digna de assinalar é a quase total ausência de temas eróticos na poesia de João Cabral.”61 A partir daquele livro, contudo, como se tivesse havido a expansão de uma sensibilidade, tudo muda: Quaderna é um livro no qual se encontra marcante sensualidade, a começar pelo primeiro poema, “Estudos Para Uma Bailadora Andaluza”, e em seguida “Paisagem Pelo Telefone”, “História Natural”, “A Mulher e a Casa”, “Imitação da Água”, “Jogos Frutais”. O sensualismo desses poemas, porém, não se vincula, necessariamente, à relação entre dois corpos, ou mesmo ao encontro entre homem e mulher: mais comum será perceber a sexualização da terra, segundo uma surpreendente oposição geográfica. Nesse sentido, terão qualidades femininas a cidade de Sevilha, os mangues pernambucanos, a Zona da Mata, as chuvas, as colinas e as montanhas; por sua vez, terão qualidades masculinas o Estado de Pernambuco, a caatinga, o Sertão, o mandacaru, o mangará. No poema “Duas Paisagens”, registra o poeta:

Em termos de uma mulher

não se conta é Pernambuco:

é um Estado masculino

e de ossos à mostra, duro,

de todos, o mais distinto

de mulher ou prostituto,

mesmo de mulher virago

(como a Castilla de Burgos).62

“Na Baixa Andaluzia”, por sua vez, exibe as qualidades femininas da região espanhola:

Nessa Andaluzia coisa nenhuma cessa

completamente, de ser da e de terra;

e de uma terra dessa sua, de noiva,

de entreperna: terra de vale, coxa; (…)

a terra das telhas, apesar de cozida,

nem cessa de parir nem a ninfomania. (…)

dessa Andaluzia, terra sem menopausa,

que fácil deita e deixa, nunca enviúva,

e que de ser fêmea nenhum forno cura.63

Portanto, também o erotismo, na poesia de João Cabral de Melo Neto, se vê definido e limitado por um ordenamento. A antropomorfização da paisagem é uma característica essencial nesses momentos em que o poeta cria entidades opostas para salientar as suas diferenças e os seus encontros. Pois quase não existe, em sua poesia, o erotismo físico, de dois ou mais corpos humanos: o processo que se percebe é de um erotismo alusivo, que metaforiza corporalmente realidades não-corporais. Pode-se mesmo considerar que a matéria erótica, tratada com nitidez contrastante, submete-se aos princípios de uma psicologia da composição: o poeta compõe, como um pintor, uma série assemelhada e coerente de retratos de paisagens e descrições de mulheres dos quais o psiquismo telúrico sobressai.

Importa reter, ainda, para além do erotismo tão peculiar, o fato de que as situações e objetos mencionados pelo poeta venham a constituir, quase sempre, lições definitivas para a sua apreensão poética. No importante poema “’A Palo Seco’”, enumeram-se diversos elementos que, por sua existência, influenciam o poeta na aquisição de uma técnica de concisão:

A palo seco existem

situações e objetos:

Graciliano Ramos,

desenho de arquiteto,

as paredes caiadas,

a elegância dos pregos,

a cidade de Córdoba,

o arame dos insetos.64

A idéia de que as coisas concretas transmitem lições contundentes para o poeta aparece ainda mais explicitamente em “Pregão Turístico do Recife”, que reafirma a preponderância visual da sua sensibilidade:

Com os sobrados podeis

aprender lição madura:

um certo equilíbrio leve,

na escrita, da arquitetura.65

Altamente seletiva, a poesia de João Cabral de Melo celebra, com rigor, as influências mais notórias que reforçam o seu caráter ortodoxo: os escritores citados são aqueles que jamais se desviaram do pacto estabelecido com o realismo crítico e analítico, com a concisão e com a repulsa à inspiração. É assim, pois, que no poema “O Sim Contra o Sim” se faz uma homenagem a Marianne Moore, que “emprega quando escreve / instrumento cortante”; e a Francis Ponge, igualmente transformado em “outro cirurgião”.66 Graciliano Ramos, o romancista de Vidas Secas (1938) é mais uma vez citado, dessa vez em poema cujo título é o seu nome, acompanhado de referências à seca da paisagem nordestina. Outros escritores e numerosos artísticas plásticos foram incluídos na restrita confraria estética do poeta, que, aparentemente, ao aceitar o ingresso de alguns deles, já havia sobejamente adquirido ou assimilado alguma técnica ou recurso artesanal. Mas não apenas os criadores de objetos artísticos ganham acesso ao poeta: além destes e das situações e objetos, também cidades, também dançarinas e toureiros podem ensinar-lhe a lição da poesia. O fascinante processo de aquisição de linguagens extraliterárias, com pleno emprego na poesia, contribui para a compreensão de uma tendência comum em João Cabral de Melo Neto: a da apreensão do mundo como fenômeno estético a ser investigado. No poema “Alguns Toureiros”, o poeta salienta, de maneira indomável, uma compreensão das touradas e, mais ainda, da arte singular do toureiro Manuel Rodríguez, o Manolete. Perceba-se, no poema, o primado da visão sobre qualquer outro sentido; a ocorrência, inusitada, ainda que sempre repetitiva, de palavras como “deserto” e “mineral”; e, por fim, uma ética do trabalho, a exigir precisão e contenção:

Mas eu vi Manuel Rodríguez,

Manolete, o mais deserto,

o toureiro mais agudo,

mais mineral e desperto, (…)

o que à tragédia deu número,

à vertigem, geometria,

decimais à emoção

e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodríguez,

Manolete, o mais asceta,

não só demonstrar sua flor

mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão

com mão serena e contida,

sem deixar que se derrame

a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la

com mão certa, pouca e extrema:

sem perfumar sua flor,

sem poetizar seu poema.67

“Alguns Toureiros” tem muitas características que poderão incluir o poema entre os mais significativos do que venha a ser a ars poetica de João Cabral de Melo Neto – ou, mais precisamente, o que define, em suas etapas principais, a totalidade do processo de composição de um poema típico da sua produção. Nele estão mencionados diversos toureiros que não são Manolete: e muitos deles, a uma leitura atenta, se revelam em comentários certamente depreciativos, segundo os padrões de recepção do poeta. Existe, portanto, uma tendência de seleção e de hierarquização que subsiste no rigor com que o poeta identifica as suas influências. A quadra de referências matemáticas, em especial os versos “à vertigem, geometria, / decimais à emoção” estampa perfeitamente o esforço do poeta em atenuar ou eliminar o suporte emocional do poema, a sua subjetividade não quantificável. Indica, evidentemente, planos de apresentação do poema, que devem ser traduzidos em linguagem universalmente convencionada, como uma casa funcional. Ascetismo e domínio da explosão (esta última palavra a significar o acaso da inspiração). A importância do trabalho é por fim salientada, havendo preocupação com a intervenção humana.

Mas a confluência entre a idéia de “duas águas” e da descrição de “situações e objetos” nunca é tão bem realizada quanto nos diversos poemas em que João Cabral de Melo Neto compara Recife ou o Estado de Pernambuco a alguma região da Espanha. Sempre que disposto a efetuar um confronto da terra brasileira com a do país em que serviu longamente como diplomata, o poeta apresenta um eixo de simetria em torno do qual enumera e, geralmente, opõe as características de cada uma. O criativo antagonismo se apresenta, muitas vezes, como imagens que se refletem num espelho. Provavelmente o melhor exemplo desse tipo de composição seja “O Sol no Senegal”, publicado em Museu de Tudo, no qual o poeta comenta o nascer do sol no Recife e o pôr do sol no Senegal, do outro lado do Oceano Atlântico, uma imagem em tudo invertida. Na comparação e no confronto estabelecido entre os dois momentos do dia, evidencia-se não apenas uma descrição plástica e visual, mas também cronológica, estreitamente vinculada ao destino do poeta: como se o ciclo do sol, que tem seu início energético na terra natal, Recife, cumprisse o período de vida do próprio poeta, que vê o astro já “murcho” e “nonagenário” quando “se desmancha no mar”.

Mas é a reflexão comparativa entre a vida no Recife e os anos de trabalho e viagens pela Espanha que mais induz o poeta a um questionamento sobre o ser-estar no mundo: a partir do grupo de poemas reunido em “Paisagens com Figuras”, no período de 1954 a 1955, já se evidenciam os jogos de oposição, comparação e interpenetração daqueles dois lugares, que ainda conhecerão outros desdobramentos ao longo da carreira do poeta até chegar ao seu livro final, Sevilha Andando (1990), que dá testemunho do périplo intenso que o poeta realizou por suas ruas estreitas e angulosas, o Museu de Belas-Artes, a Catedral, a praça de touros. Nunca se percebe qualquer sinal de dépaysement: pelo contrário, o poeta aguça seus sentidos, como se provocado pela terra alheia, e parte resoluto para nova comparação, novo confronto. Num poema como “Pernambucano em Málaga”, de Serial (1961), nota-se bem a identidade do poeta projetada sobre as “situações e objetos”: pois o pernambucano, no caso, é a percepção da cana-de-açúcar plantada em Málaga, a partir da qual vão sendo estabelecidas as oposições:

§ A cana doce de Málaga

dá dócil, disciplinada:

dá em fundos de quintal

e podia dar em jarras.

Falta-lhe é a força da nossa,

criada solta em ruas, praças:

solta, à vontade do corpo,

na praça das grandes várzeas.68

O jogo de oposições e de confrontos muitas vezes chegou mesmo a ser efetuado dentro de uma só região, quando coube ao poeta questionar os estereótipos, as idéias falsas e os lugares-comuns redutores. O que motiva o poeta é, mais uma vez, uma crítica do subjetivismo poético, sabiamente fundamentada na experiência. É o que faz, por exemplo, quando opõe uma Espanha no coração a uma Espanha na tripa:

1. A Espanha é uma coisa de tripa.

Por que “Espanha no coração?”

Por essa víscera é que vieram

São Franco e o séquito de Sãos.

A Espanha é uma coisa de tripa.

O coração é só uma parte

da tripa que faz o espanhol:

é a que bate alerta e o alarme.

2. A Espanha é uma coisa de tripa,

do que mais abaixo do estômago;

a Espanha está nessa cintura

que o toureiro oferece ao touro, (…)69

Já se sabe: tudo, em João Cabral de Melo Neto, parece pretexto para investigar o próprio poema. Não importa, muitas vezes, se o assunto é a morte ou a Espanha, o canavial ou as águas do Recife: subjacente a todos os seus temas, permanece a necessidade de meditar sobre a poesia de Marianne Moore, sobre a prosa de Graciliano Ramos e sobre numerosos exemplos de artistas que dão forma a um método de composição tão pessoal. O resultado dessa pesquisa se mostra duradouro: não apenas em poetas já citados aqui, que exibem a forte influência do rigor do poeta, como também em movimentos significativos no contexto da literatura brasileira, como o foram o Concretismo e também a Poesia-Praxis. Sem a compreensão do trabalho de investigação do poeta de A Educação Pela Pedra, não se pode compreender, em todas as suas implicações, as semelhanças e as divergências existentes naqueles movimentos, e muito menos o aporte que trouxeram para a nova poesia que se faz no Brasil. No poema de abertura do livro Agrestes, João Cabral de Melo Neto resolve estabelecer, implicitamente, o vínculo entre a sua poesia e a do Concretismo, em “A Augusto de Campos”. Como artesão consciente do seu ofício e dos seus instrumentos, sabe que sua contribuição técnica se manifesta, por exemplo, na utilização do verso de oito sílabas, que confere ao poema uma aproximação ao ritmo da prosa; a rima toante, que, por sua vez, “apaga o verso e não soa”. Todo o esforço desse poeta-artesão se concentra num trabalho de renovação: por isso mesmo a menção, naquele poema, às ações de “passar a limpo”, “refazer”, “dar mais decoro”. Porém, a consciência crítica do poeta também inclui uma reflexão sobre o aspecto evolutivo da poesia, na qual os poemas que escreveu também serão passados a limpo e refeitos, e exibirão mais decoro. Por isso, em nota auto-irônica, o poeta se define como um poeta revolucionado, que percebe a sua própria poesia numa dimensão “muito aquém do ponto extremo”, em contraposição à do Concretismo, que conseguiu levá-la “à pureza extrema”. Como poeta moderno, João Cabral de Melo Neto tem obsessão por “fazer/catar o novo”, atividade que reconhece muito mais intensa numa nova geração; e, também moderno, não hesita em anunciar renúncias ou mesmo a interrupção definitiva do seu trabalho – afinal desmentidas pelos livros posteriores – num poema como “O Postigo”, de Agrestes, no qual o poeta compara o ato de escrever a uma permanente estréia, para a qual já não faz mais sentido o “antigo ancinho”, ou seja, a antiga percepção e o antigo instrumento de trabalho de que se vale para compor o poema. Revolucionada ou não, a obra poética de João Cabral de Melo Neto representa a etapa mais importante a unir a liberdade de expressão alcançada pelo Modernismo e as experiências formais que tiveram início a partir dos anos 50. Mais do que isso, o poeta como que demarcou novas áreas de sensibilidade para a poesia, segundo uma operação paradoxal em que os limites auto-impostos serviram à ampliação das possibilidades dos novos poemas. Assim, as “situações e objetos” de interesse do poeta convergiram para o entendimento profundo da poesia e para a revelação da persona do poeta, tantas vezes iludida: mas esta poesia e esta persona se revelam, como construção íntegra, como sólida imagem, “Melhor que a música e a oratória”, na imagem de permanência histórica, jamais ultrapassada, que se exibe na quadra final do poema “O Teatro Santa Isabel do Recife”, que fala pelo poeta:

em vez das redes que lá dentro,

te envolvem, dissolve, se vão,

fica o meu mudo perfil lúcido,

cristal oposto ao fumo e ao vão.70

Brasília, junho de 2001.

1 “Prólogo”, Informe de Brodie (Madrid: Alianza Editorial, 1982, 5a edição), p.11.

2 Cf. “O Movimento Modernista”, Aspectos da literatura brasileira (São Paulo: Martins, 1974, 5a edição), p.231-255.

3 Cf. Sebastião Uchoa Leite, “Máquina Sem Mistério: a Poesia de João Cabral de Melo Neto”, Crítica clandestina (Rio de Janeiro: Taurus, 1896), p.115.

4 “João Cabral de Melo Neto e Sua Poesia”, Pedra do Sono (Pernambuco: edição do autor, 1942).

5 Cf. “Surrealismo no Brasil”, Brigada ligeira e outros escritos (São Paulo: UNESP, 1992), p.105. A primeira edição deste livro data de 1945, e reúne críticas publicadas no jornal Folha da manhã entre janeiro de 1943 e janeiro de 1945.

6 Carlos Drummond de Andrade, Reunião (Rio de Janeiro: José Olympio, 1977, 10a edição), p.3.

7 Idem ibidem, Op. cit., p.4

8 Idem ibidem, Op. cit., p.5

9 Cf. Flora Süssekind (Org.), Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001), p.171. Carta de 23 de novembro de 1941.

10 Idem ibidem, Op. cit., p.234. Carta de 14 de agosto de 1950.

11 Carlos Drummond de Andrade, Op. cit., p.30. A notícia foi publicada no jornal A Pátria, em 6 de agosto de 1931.

12 A título de curiosidade, recorde-se que João Cabral de Melo Neto esteve de passagem por Brejo das Almas e de lá enviou telegrama para Carlos Drummond de Andrade, em 15 de novembro de 1942. Já havia, então, publicado Pedra do Sono. Cf. Flora Süssekind (Org.), Op. cit., p.183.

13 Carlos Drummond de Andrade, Op. cit., p.19.

14 Cf. Antonio Carlos Secchin, João Cabral: a poesia do menos (Rio de Janeiro: Topbooks/Biblioteca Nacional/Universidade de Mogi das Cruzes, 1999, 2a edição, revista e ampliada), p.27-28.

15 João Cabral de Melo Neto, Poesias completas – 1940-1965 (Rio de Janeiro: Sabiá, 1968), p.365.

16 Cf. Luiz Costa Lima, Lira e antilira – Mário, Drummond, Cabral (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968), p.250-253.

17 O engenheiro (Rio de Janeiro: Amigos da Poesia, 1945), p.17.

18 Cf. jean-Paul Sartre, Qu’est-ce que la littérature [1948], (Paris: Gallimard, 1985), p.16-25.

19 Pedra do Sono, sem numeração de página.

20 O engenheiro, p.18 e p.19.

21 “A Lição de Poesia”, Op. cit., p.36.

22 Idem ibidem, Op. cit., p.38.

23 Carta escrita em Barcelona, em 17 de fevereiro de 1948. Cf. Flora Süssekind (Org.), Op. cit., p.59-61.

24 Carta de 30 de julho de 1948. Idem ibidem, Op. cit., p.225.

25 “A Página Branca e o Deserto”, Esfinge clara e outros enigmas (Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, 2a edição), p.189. O abrangente estudo sobre os livros do poeta foi publicado seriadamente na Revista do livro, em quatro partes, entre setembro de 1957 e junho de 1958.

26 João Cabral de Melo Neto, Poesias completas – 1940-1965, p.326 e 327.

27 “A Página Branca e o Deserto”, Esfinge clara e outros enigmas, p.198.

28 Representa esta segunda corrente, assinala José Guilherme Merquior, o estudo de Angel Crespo e Pilar Gomez Bedate, “Realidad y Forma en la Poesía de João Cabral de Melo”, Revista de cultura brasileña, março de 1964, tomo III, número 8, p.27-36.

29 “Nuvem Civil Sonhada”, A astúcia da mímese (Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, 2a edição), p.129 e 130.

30 Cf. Op. cit., p.145, 149 e 152. Muito a propósito é a conclusão genérica do crítico: “A poesia da poesia de João Cabral de Melo Neto é uma estratégia ambígua, onde o poder da acurada descrição do processo criador se desdobra em reflexão ontológica e existencial.” (p.160).

31 “Sobre João Cabral de Melo Neto”, Seis poetas e um problema (Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1960), p.160.

32 Cf. Op. cit., p.113, 117 e 118.

33 João Cabral de Melo Neto, Poesias completas – 1940-1965, p.328, 329 e 330.

34 Cf. Luiz Costa Lima, Lira e antilira – Mário, Drummond, Cabral, p.279. Outras sugestivas diferenças de concepção de poesia entre Paul Valéry e João Cabral de Melo Neto são apresentadas no item 5.1 do estudo em apreço, p.276-280.

35 Idem ibidem, Op. cit., p.289.

36 João Cabral de Melo Neto, Poesias completas – 1940-1965, p.175 e 176.

37 Jorge Guillén, Op. cit., p.69.

38 João Cabral de Melo Neto, Op. cit., p.331.

39 O engenheiro, p.50.

40 Poesias completas – 1940-1965, p.332.

41 Op.cit., p.336.

42 Museu de Tudo (Rio de Janeiro: José Olympio, 1975), p.55.

43 Angel Crespo e Pilar Gomez Bedate, “Realidad y Forma en la Poesía de João Cabral de Melo”, Revista de cultura brasileña, março de 1964, tomo III, número 8, p.38.

44 Joaquim Cardozo, “Soneto Somente”, Poesias completas (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, 2a edição), p.196.

45 Op. cit., p.28.

46 Poesias completas – 1940-1965, p.305.

47 Op. cit., p.308-309 e p.314-315.

48 Op. cit., p.307.

49 Museu de Tudo, p.33

50 Poesias completas – 1940-1965, p.276.

51 Op. cit., p.279.

52 Op. cit., p.287 e p.289-290.

53 Op. cit., p.292.

54 Op. cit., p.216-217.

55 Op. cit., p.229.

56 Op. cit., p.228.

57 João Cabral de Melo Neto, Duas águas (Rio de Janeiro: José Olympio, 1956).

58 Poesias completas – 1940-1965, p.21-22. Corrige-se, aqui, o segundo verso do poema, fiel à edição da Obra completa (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994), p.346.

59 “A Augusto de Campos”, Agrestes (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985), p.9.

60 Poesias completas – 1940-1965, p.12-13.

61 “A Página Branca e o Deserto”, Esfinge clara e outros enigmas, p.192. Ver, ainda, Felipe Fortuna, “De Como se Dá o Erotismo na Poesia de João Cabral de Melo Neto”, A escola da sedução (Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1991), p.62-72.

62 Poesias completas – 1940-1965, p.269.

63 Op. cit., p.42.

64 Op. cit., p.164.

65 Op. cit., p.245.

66 Op. cit., p.58-59.

67 Op. cit., p.258-259.

68 Op. cit., p.64.

69España en el Corazón”, Agrestes, p.67.

70 A escola das facas (Rio de Janeiro: José Olympio, 1980), p.53.

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