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Prefácio de Sergio Paulo Rouanet

UMA POÉTICA DA FALTA

Sergio Paulo Rouanet

Alguns poderiam dizer que é muito cedo para que um poeta de 40 anos publique uma obra reunida. Não me lembro que idade tinha Drummond quando publicou uma coletânea chamada Fazendeiro do ar & Poesia até agora, mas a ideia de juntar num livro coisas pensadas e escritas ao longo da vida só costuma ocorrer quando se chega à idade, senão da síntese, pelo menos do balanço, naquela fase já quase póstuma em que avaliamos, à maneira de Brás Cubas, se “somadas umas coisas e outras”, saímos ou não “quites com a vida”. Esse olhar retrospectivo supõe que a obra para a qual se olha já é algo de definitivo. No caso de Felipe Fortuna, sentimos que o objetivo da obra reunida é outro. O autor não está olhando para trás, mas para frente, acumulando forças, pela visão do caminho percorrido, para novos voos líricos, cujo caráter sempre incompleto dificulta qualquer balanço.

É dessa incompletude que precisamos partir. Falta sempre alguma coisa na poesia de Fortuna:

Os senhores também percebem

que falta sempre um verso, pois

o que se lê provoca mais procura.

Fiquem tranquilos se nada encontrarem:

o poema continua lá,

como se os senhores já o estivessem lendo.

Não é por acaso que este poema está no pórtico do livro, porque ele estabelece de saída uma relação irônica com a própria designação de “obra reunida”. A obra atual é completa, porque reúne tudo o que foi escrito, e ao mesmo tempo é incompleta, porque se em cada poema falta um verso, seria possível compor um novo poema com todos os versos que faltam, como os fragmentos de filmes cortados pela censura, no filme Cine Paradiso, poema feito de faltas, ao qual por sua vez sempre faltará um verso, o que condena à impossibilidade qualquer tentativa de um dia publicar, de fato, as obras reunidas de Felipe Fortuna.

Quem diz falta diz que falta alguma coisa, mas diz também transgressão, culpa e expiação. Será que podemos juntar os dois sentidos da palavra, dizendo que nossa falta consiste em procurar aquilo que nos falta, aquilo que deverá faltar-nos por toda eternidade, aquilo que estamos proibidos de alcançar, mas que não podemos deixar de procurar? É a dupla falta a que alude o mito da androginia, de Platão: sentimos falta da unidade original entre homens e mulheres, e estamos proibidos de voltar a essa indiferenciação. É a dupla falta narrada no Gênesis: por falta de nossos primeiros pais, fomos expulsos do Paraíso, e estamos condenados a sentir falta da bem-aventurança original. É a dupla falta que reaparece sob várias formas em toda a teoria psicanalítica: falta filogenética – crime primitivo contra o pai, nostalgia da horda primitiva – e falta ontogenética – saudade do útero e culpa decorrente dessa saudade, estranheza e angústia diante do corpo da mulher, a quem falta um falo (castração) e desejo de superar essa falta investindo um objeto substitutivo de características fálicas (fetichismo).

Em que essa dialética da falta se aplica à poesia? Walter Benjamin diria que em nosso mundo profano, há sempre um descompasso entre as palavras e as coisas, ao contrário do Éden, em que a linguagem adâmica era inteiramente adequada às coisas, nomeando-as com o nome que elas verdadeiramente tinham. A linguagem profana é produto da queda, é marcada por uma falta, por uma deficiência nomeadora, e por isso sentimos falta da língua primordial, da língua de Deus. De todas as linguagens humanas, a da poesia é a que mais se aproxima da língua de Deus, mas até ela é deficitária diante da exuberância das coisas criadas. Mesmo a mais pura poesia está sempre a um passo da verdadeira nomeação, aquela em que o significante se extingue, absorvido pelo objeto nomeado. É o que diz Fortuna: falta sempre um verso. Mas essa falta não é um estigma, é a mimese de um estado de coisas em que a falta (racha, lacuna, falha, contravenção) é a marca do humano e em que toda tentativa de calafetar as “fendas do universo” (Heine) pertence ao domínio da metafísica e da ideologia. O poema não está tanto no que é dito mas naquilo para o qual o dito aponta, ao chegar aos confins do dizível.

E no entanto esse poeta do inacabamento aspira a um estado definitivo, que lhe é vedado:

Detesto as coisas inacabadas.

Nós poderíamos ser

os únicos animais definitivos.

Mas transitamos sem conhecer

o centro do nosso giro.

(…)

Sim, não somos definitivos.

Ninguém chora por isso.

Ou antes, pelo menos o poeta chora, mas não há o que fazer. Ele está condenado a desconhecer aquele espaço em branco que constitui o território de onde emana a poesia, e em que ele não pode entrar nunca, porque sempre falta um verso, e é dessa falta que vem a poesia. Quem mora nesse espaço? Ouçamos Fortuna:

Meu computador deleta, corrige,

faz em silêncio uma faxina completa

e cria a suspeita

de que nem só de mim

a escrita se alimenta.

Atrás do poema, escondido

em alguma transparência,

o dicionário eletrônico ampara

a minha dúvida, que não dura o tempo

de apertar a tecla.

Dentro do branco mora um Superego eletrônico, que como todo Superego é senhor das palavras, as lícitas e as proibidas, e que, fiel à sua função, ordena, proíbe, deleta, castra. Sim, o branco assusta. Como aquela pedra do sono, a naftalina, que tem o poder inexplicável de matar insetos. Diante dela, somos todos insetos, fumigáveis, extermináveis. Ela é um branco que se faz ídolo, do qual emana um clarão majestático e justiceiro:

E por que o ponto branco se coloca

nos cantos invisíveis, nos armários

embutidos e estratégicos recintos

se melhor seria, como a um grande Deus,

fabricá-lo enorme, e sobre a mesa da sala

deixá-lo reinando em seu mistério e seu milênio

Enquanto se acaba, enquanto se perde, enquanto mata.

É dessa matéria assassina que se fazem os deuses, derivações do Pai, figura que mora nos brancos de nossa vida consciente e pune delitos contra a gramática e contra a ordem da filiação e da aliança. Como o Pai, os deuses são amados e odiados.

Um homem na praça – o crente –

berra Deus e cospe Deus.

Ao clamar louvado seja,

não louva: acende crateras.

Gritar é um modo de amar?

Toda verdade tem raiva?

(…)

Deus-Pai mora na falta, naquilo que falta no papel, na tela e no psiquismo, no branco do poema e da mente, e zela para que não cometamos a falta para a qual não há perdão, a de eliminar a falta (falha, lacuna, distância) que nos separa do pai, transformando-nos nele e com isso tomando posse da mulher proibida. É o passo que não pode ser dado, o último verso, que não consuma a obra, mas a consome:

O sétimo verso, o último

Me fez rasgar todo o poema.

A falta é composta de muitas distâncias. Diplomata, Felipe está distante do Brasil. “Minha profissão”, diz ele, “é ser distante”. Distância da natureza, simbolizada por uma natureza morta de Cézanne, em que não se sabe mais se a natureza se transformou no quadro, ou o quadro que se fez natureza. E distância, em geral, como parte da condição metafísica do homem.

A distância entre as coisas é um problema eterno.

Tu és coisa distante de Deus

e Ele é coisa distante do entendimento:

sou coisa distante de ti, ó corpo feminino,

e mesmo quando nos servimos em festa

é com nossa distância que nos divertimos.

Sensação e sabor: pura distância.

Horizonte e arquipélago: mesma coisa.

Quanta estranheza nos abraça (…).

Mas a distância dói, e Felipe tenta aboli-la. Como? Talvez pelo amor. Os poemas eróticos de Felipe estão entre os mais belos do livro. A distância parece ser abolida pelo encontro dos corpos no ato amoroso e por sua fusão num só.

Como se fossem raízes

movendo-se devagar

em lençóis incandescentes,

dois corpos se comunicam

porosidade do fogo,

evaporação do vinho.

Dois corpos, como se fossem

descobrir no chão da pele

a duração da nudez.

(Quando dois corpos se abraçam,

dois corpos abraçam tudo.)

Mas atenção: a distância está sempre presente, mesmo nesse instante de aproximação máxima. Os dois corpos podem ser de uma pessoa só, o corpo de Narciso, e nesse caso não há nenhuma comunicação com o Outro:

Ah meu corpo meus dois corpos

Qual dos dois é o que persigo?

Qual o que tem mais partes minhas?

Com qual deles ando e vivo?

Além disso, a morte, que vive da distância e tem como ofício desligar o que foi ligado por Eros, está sempre a postos. Em três dos poemas eróticos de Felipe, as carícias amorosas são perturbadas por uma metáfora recorrente, que significa morte: o tiro. É o caso de “Nos Bancos da Frente”:

A língua lenta dedilhando

a boca molhada

onde quero com sabor trocar de fala,

e me enterrar vivo como um tiro.

Em outro, “No Banco de Trás”,

Dois corpos lotados no carro.

Largo é o toque dormente nos seios,

vastas as pernas que nasceram

– como um tiro – da pele desabotoada.

Enfim, em Première:

Quando acordei, já tinha sido: um tiro a esmo

que perturbou a noite e só feriu o sono

e ensanguentou os braços dados de nós mesmos.

Em que lugar do texto habita a morte? Sempre no lugar mais enigmático, o espaço em branco. Esse espaço se torna literal num dos poemas de Fortuna:

Às vezes meu nome estranho

leio assim

Fortuna, Felipe. (1963– ),

como anagrama da morte.

Devo considerá-lo um hiato:

Aquele espaço, um vazio em que só cabe

A vida que se acaba e risca um número?

O mistério metafísico do que está do outro lado da vida se transforma no mistério gráfico do que vai aparecer do outro lado do hífen. Como será preenchido o espaço em branco, esse espaço em branco onde a morte espera?

A falta é composta de muitas ausências.

Pelo hiato passaram

trinta palavras

que eu não falei;

Pelo silêncio escorreu

o olhar vago que não tenho.

O gesto de amor esquecido

deixei que fugisse

pelo abandono;

Um dia reúno isso tudo

e publico um livro em branco.

O poema é constituído por tudo aquilo que não está nele. Ele é habitado por uma grande falta, uma falta tão grande quanto o mundo, porque é a soma de tudo aquilo que não dissemos e fizemos, de todas as mulheres que não tivemos e de todas as palavras que não escrevemos. O livro em branco se transforma na idéia reguladora da poética da falta.

É o equivalente, na escrita, do silêncio: palavra em branco. Daí a importância que Felipe Fortuna atribui ao silêncio, às vezes personalizando-o, fazendo-lhe perguntas que, sendo silêncio, ele não pode responder. Felipe dá às vezes forma textual ao silêncio, suprimindo fragmentos de fala entre duas frases, terminando-a antes do fim:

Quisera escrever branco em branco

e ainda assim mudar de linha.

O verso interpretado, a música

conduzida no ar como um salto,

mas cada palavra invisível.

( ). Equilibrar

Vogais de cores corrompidas,

e a sílaba desaparece

Quando é lida. Quisera então

Escrever o poema sem.

Trechos assim são intermezzi de silêncio, como o espaço em branco que aparece na segunda estrofe, entre parênteses, e tudo o que vier depois da palavra “sem.”

O silêncio serve também para desmistificar, como no poema em “A Tragédia da Existência”:

Quero fazer uma especulação metafísica.

Ou seja:

Aqui o espaço em branco tem como função ridicularizar o pedantismo dos que disfarçam sua nulidade com uma profundidade aparente. É como no Micromégas, de Voltaire. No momento de abandonar nosso planeta, o erudito habitante de Sírius prometeu que mandaria um estudo revelando todos os enigmas do universo. Pouco depois, chegava o documento, que foi aberto numa sessão solene da Academia de Ciências. O papel estava em branco.

No fundo, gostaria de ter imitado Micromégas, limitando minha apresentação a algo como “Vou apresentar a obra de Felipe Fortuna”. Ou seja: o espaço em branco denotaria minha incapacidade de fazer justiça à obra desse poeta, hoje um dos maiores de sua geração, minha convicção de que ele não precisa de apresentação alguma. e meu conselho de que o leitor passe sem demora à leitura do livro.

Rio de Janeiro, 21 de junho de 2004

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