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Resenha de Adriano Espínola

Suplemento Literário de Minas Gerais
No. 1068 – 11 de abril de 1987

O CRÍTICO E O POETA: OU VICE-VERSA
Adriano Espínola

Crítico militante do Jornal do Brasil, sobretudo de poesia, Felipe Fortuna, 23, com seu livro de estreia Ou Vice-Versa (1986), parece querer mostrar que os caminhos teóricos podem receber o contrafluxo de uma prática literária igualmente criativa.
O volume divide-se em cinco partes (Um Nome, Vasto Mundo, Crise, Palavra e Sobrevivência), as quais, a partir dos títulos, apontam em conjunto para a problemática do esvaziamento vital do homem pós-moderno. A afirmação da individualidade, o olhar para a pluralidade do real e para a condição humana (“nós poderíamos ser / os únicos animais definitivos”), a metalinguagem como traço distintivo da poesia contemporânea (“o verso que me falta não consigo”) e finalmente a consciência angustiada de uma possível autodestruição (“estamos cegos e sós / (…) preste a ouvir / o quadrado da explosão”) significando o abandono da História e o paradoxo da ciência do século XX, todos esses subtemas, urgentes e necessários, acabam por compor, em seu livro, um tecido sintomático de nossa época.
Não obstante os dados teóricos de que dispõe o autor sobre o fazer literário, seus poemas se encontram muito mais impregnados de uma emoção bruta, vivenciada, que de procedimentos racionais, dos quais o poeta legitimamente desconfia. A força que impulsiona suas imagens, entre a perplexidade e a indignação, é lírica. Lirismo entretanto aberto à realidade e questionador de seus fundamentos. Tem razão Cláudia Roquette-Pinto, ao apresentar o livro, quando afirma, nesse sentido, que Fortuna expressa “a vontade de um enfrentamento poético, repleto do vigor das descobertas”.
Importante assinalar a fatura estética de que se reveste tal enfrentamento. Surpreende, sendo este um livro de estreia, a realização formal da maioria dos poemas. A começar pelo “Biografia”, belo texto em que o poeta se anuncia inseparável do verso que fabrica:
E desdobro-me no avesso reinício,
só consigo inventar o que acredito,
e já não sei mais se é medo ou se é mito
o poema que constrói um precipício
.
Adiante, o poeta resume toda a carga de sua solidariedade humana num decassílabo de sabor antológico: “Alguma coisa em mim é a tua dor”, com o qual inicia um dos seus melhores poemas. E nisso de imagens e versos, encontramos alguns trechos realmente admiráveis, quer pela capacidade reveladora, quer pela musicalidade atingida: “Colho a paisagem em que me planto”; “a solidão é estranha se há desejos. / O corpo é musical no lado esquerdo.”
Evidente que aqui e ali o poeta não consegue manter a mesa tensão artística que modula a maioria de seus versos. Talvez por ser sua primeira experiência. Há mesmo alguns poemas curtos, meio irônicos, que cuja intenção de obter a cumplicidade e o silêncio do leitor simplesmente não acontece. Noutros – felizmente poucos –, a ironia pretendida parece destoar do grave e sentido lirismo que anima a maior parte dos poemas, nos quais o poeta alcança seus grandes e verdadeiros momentos, como em “Meditação”, “Herança”, “E=mc2”, por exemplo.
Mas estas pequenas ressalvas não importam. O que vale mesmo é a força e a beleza com que o poeta se apresenta em conjunto. E isso é indiscutível. Talvez tais senões sirvam apenas para credenciar a afirmativa de que Ou Vice-Versa se impõe como uma das melhores estreias da poesia nesses últimos anos. Pelo alcance das reflexões, pelo lirismo revelador e solidário e pela consciência de seu artesanato. Resta esperar algum dia pela Fortuna crítica de sua poesia e, quem sabe, pela Fortuna poética de sua crítica. Ou vice-versa.

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