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Resenha de Celia Pedrosa

Jornal do Brasil
Caderno Ideias
Sábado, 8 de fevereiro de 2003

ATENÇÃO AOS DETALHES
Ensaios de Felipe Fortuna comprovam minúcia de sua análise literária

Celia Pedrosa

Sobre o último livro de Felipe Fortuna, a coletânea de ensaios de crítica literária A próxima leitura, é difícil fazer uma avaliação unívoca, pois nela estão reunidos muitos textos, 18, e de caráter bem diverso. Às vezes bem curtos e contundentes, como os originalmente escritos para publicação em jornal, às vezes longos e de objetivo mais amplo, como os até então inéditos ou reescritos (quase todos nos últimos quatro anos), eles ainda se diferenciam bastante quanto aos temas e ao recorte histórico, que o ensaísta tenta definir ao mesmo tempo com erudição e atenção ao detalhe. Passando tanto pela prosa quanto pela poesia – embora em relação a esta, francamente dominante, demonstre maior afinidade – Felipe revisita o cânone moderno, com Mário de Andrade, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade; nele tenta abrir espaço maior para autores como Joaquim Cardozo e Cassiano Ricardo; relê a opção simbolista de Cruz e Sousa; e, ultrapassando os limites do nacional, analisa ainda a lírica de Elizabeth Bishop e Rilke. Este último aparece indiretamente, em função da abordagem do trabalho tradutório de Augusto de Campos, estendida também, em outro texto, a sua dicção crítica –indiciando agora um interesse pelo contemporâneo retomado nos estudos sobre Dalton Trevisan, Sebastião Uchoa Leite, Frederico Barbosa e Décio Pignatari.

Em relação a esses escritores, Felipe-Fortuna desenvolve leituras quase sempre marcadas pela minúcia analítica, e pela sensibilidade em detectar aspectos e questões, se não novos, com certeza ainda interessantes. Assim, em relação a Cruz e Souza, por exemplo, vai discutir as relações ente opção simbolista e problemática étnica, apontando falhas e reducionismos na crítica anterior a elas dedicada. Em Elizabeth Bishop, aponta para a vinculação entre texto poético, cartas e narrativa de viagem, e com isso sugere a possibilidade tanto de um outro olhar sobre o estético quanto de relativização das restrições ideológicas feitas à poeta. Quanto a Drummond, ao lado de um texto crítico sobre sua biografia escrita por José Maria Cançado, ressalta o ensaio em que, embora tome como ponto de partida a já bastante conhecida oposição entre linguagem de alta voltagem lírica e tendência mais tardia ao memorialismo e à crônica, Felipe consegue indicar uma interessante associação entre a temática da corporalidade e a velhice do poeta. Face à poética de Joaquim Cardozo, Felipe, em seus textos a nosso entender mais bem realizados, vai enfatizar seu papel de “escritor de referência” para outros poetas e desenvolver acurada leitura de sua poética do movimento, sem deixar de referir-se ao lugar que nela ocupam fatores de evidente extração biográfica.

Em todos esses ensaios se evidenciam o interesse e a acuidade com que trabalha o ensaísta, com a relação entre vida e obra, tentando a partir dela atualizar a clássica concepção de modernidade estética enquanto signo de negatividade, autorreflexão e metalinguagem. Mas, na medida em que tal esforço de atualização não parece se fundamentar em uma perspectiva histórica e teórica clara, o ensaísta acaba por não aprofundar o entendimento de aspectos e questões que levanta. Daí resulta poder afirmar, por exemplo, ao final de seu ensaio sobre E. Bishop, que “é possível escrever grande poesia mesmo quando se encontram problemas de informação e apreciações confusas sobre outras culturas” -reafirmando assim uma dicotomia vida/obra que sua análise parecia inicialmente relativizar, a partir da manipulação de um material discursivo e biográfico instigante. Essa falta de definição vai reduzir o alcance de outras interessantes observações suas, como a que faz sobre a diferença entre o valor da concisão em Joaquim Cardozo, Frederico Barbosa e na poesia dita marginal dos anos 70, reduzida por ele a uma “experiência nanica e intelectualmente débil” – diferença que ele afirma com ênfase mas não justifica nem desenvolve em algum de seus desdobramentos de ordem estética e histórica. Ou sobre a “mistura de estilos”, tal como cunhada por Erich Auerbach, que percebe como elemento de identificação entre poetas tão diversos como Frederico e Armando Freitas Filho, sem se deter em explicação ou exemplo. Ou ainda sobre a condição de precursora que vai atribuir à poesia de Augusto dos Anjos face a dicções tão várias como as de Décio Pignatari e Joaquim Cardozo – condição essa que acaba soando tão arbitrária quanto a por ele criticada na perspectiva historiográfica de Augusto de Campos, que permitiria identificar Shakespeare como precursor do concretismo. Percebe-se que uma reflexão sobre ou a partir da importância da visualidade na elaboração da linguagem poética em diferentes momentos da modernidade bem poderia ser um dos eixos estruturadores dessa fundamentação cuja ausência lamentamos. Felipe já dedicou um livro ao tema – Visibilidade: ensaios sobre imagens e interferências (Record, 2000). E nos ensaios agora comentados faz interessantes observações, como a da temporalidade na poesia visual de Décio Pignatari, carregada de angústia existencial à la Schopenhauer – cujo alcance crítico queda obscurecido por uma comparação pouco clara com a reflexão kantiana. Ou a da visualidade estruturante do lirismo de Bishop, que articularia afetividade doméstica e observação cultural – enfoque pouco desenvolvido e esvaziado pela referência talvez inadequada e não suficientemente esclarecida a uma “poesia de reação”. Ou a da relação entre a poesia de Rilke e a visão escultórica, aprendida no convívio com Rodin, que acaba por ser apenas uma referência no texto em que Felipe, na verdade, parece ter com como objetivo principal criticar a prática tradutória de Augusto de Campos por se pautar por a prioris segundo ele pétreos, como o da coisificação valorizada no poeta alemão.

Talvez a necessidade de evitar incorrer numa petrificação dessa ordem justifique a falta de sistematicidade crítica que apontamos. Nada que não possa ser superado em próximas leituras que, com certeza, Felipe Fortuna empreenderá, como se vê pelo convívio constante que demonstra ter tanto com clássicos quanto com novos nomes da literatura brasileira e ocidental.

Celia Pedrosa é professora de literatura brasileira e teoria da literatura da Universidade Federal Fluminense

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