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Resenha de Frederico Gomes

Jornal do Brasil
Suplemento Ideias / Livros
Sábado, 9 de setembro de 1995
UMA VOZ FEMININA E SINGULAR
Estudo e tradução revelam arte de uma mulher que desafiou as convenções da sua época

Frederico Gomes

“Calvino chamou-a de plebeia meretrix.” É com esta frase que o poeta e diplomata Felipe Fortuna inicia sua introdução à vida e obra de Louise Labé, cortesã nascida em Lyon, na França, e que provocou, com suas atitudes revolucionárias para a época, uma série de julgamentos equivocados ou, no mínimo, contraditórios. A cidade de Lyon era um dos mais importantes centros da economia e da cultura europeias por sua privilegiada localização geográfica, superando desse modo a própria capital parisiense. A corte de Henrique II ali se instalava com frequência, numa operação de tal porte que sua recepção pelos lioneses chegava a durar duas semanas: e foi aí que a poeta francesa viveu e produziu sua obra, fazendo com que mesmo o rei sucumbisse aos seus encantos, tornando-se seu amante.

Proveniente de uma família burguesa abastada e, como era comum na época, casada com um homem muito mais velho e da mesma posição social, Louise Labé teve uma educação esmerada que a levou a superar, em muitos aspectos, os ideais do humanismo renascentista. Recebia assiduamente em sua residência os mais importantes intelectuais e artistas que transitavam por Lyon e era insubmissa às regras morais e políticas que determinavam, então, o comportamento social da mulher, como podemos ler em sua “Epístola Dedicatória”: um pequeno libelo feminista.

Suas incursões amorosas, que ultrapassavam a rotina imposta por um casamento de conveniência, levaram-na à descoberta do outro – não como mero objeto imposto, mas como objeto de seu próprio desejo, de seu corpo. Isto tendo em vista que, no quadro das irrefutáveis conquistas humanistas do século 16, o único “valor artístico” atribuído à mulher era restrito aos trabalhos manuais de tapeçaria e bordados – além, é claro, de ser considerada fonte de prazeres da carne. Contemporânea de Rabelais e Ronsard, entre outros, em sua maioria antifeministas (Erasmo de Roterdam referiu-se à “doce loucura do querido animal”), Louise Labé soube, para surpresa e perplexidade de seus contemporâneos ilustrados, revelar através de sua vida e obra a alteridade feminina.

Amor e loucura é um pequeno grande livro na medida em que contém toda a obra produzida pela poeta francesa: a prosa de Disputa de loucura e de amor, três elegias e 24 sonetos. Uma irresistível definição para tão pouca, mas definitiva atividade poética podemos buscar no modo como Jorge Luís Borges qualificou o paradoxo de Aquiles, legitimando-o com a palavra joia – “pequenez valiosa, delicadeza que não está sujeita à fragilidade, grande facilidade de transferência, limpidez que não exclui o impenetrável, flor para os natalícios”. O que, no caso deste livro, cai como uma luva, já que todo ele é atravessado pela tensão paradoxal existente na disputa entre amor e loucura, provocando o interesse de autores tão diversos como Montaigne, Sainte-Beuve, Tomas Morus, Simone de Beauvoir, Virginia Woolf, Foucault e, last but not least, Felipe Fortuna, seu excelente tradutor brasileiro.

Contra o mito do amor cultivado pelos humanistas, cujo modelo era a filosofia platônica, Louise Labé contrapunha seu discurso erotizado pela presença concreta, física, do corpo. Nesse sentido, Octavio Paz, ao lembrar em seu ensaio “Poesia, Sociedade, Estado” (em O arco e a lira) a inquietude filosófica e vital do século 16, dedica algumas linhas à liberdade intelectual e criativa de poetas como Marot, Scève, Ronsard e d’Aubigné, entre outros, e inclui Labé – única figura lítica feminina – cujo erotismo é testemunho “de espontaneísmo, desenvoltura e criação livre”. Mesmo em relação aos blasonenneurs du corps feminin que viveram a livre tradição do século das luzes, é ela que mais se assemelha ao conceito moderno de erotismo.

Contudo, Louise Labé não foi inovadora apenas ao desvelar em sua obra as convenções que, em se tratando sobretudo de mulher, via de regra encobriam hipocrisias dos costumes de época; também inovou no nível dos princípios que regem a criação da linguagem literária. A prosa de Disputa de loucura e de amor é formalmente a que mais se aproxima da concisão da narrativa moderna e também, como observa argutamente Felipe Fortuna m sua introdução, pelo seu “impecável realismo” argumentativo. Suas elegias e sonetos são dedicados provavelmente, segundo pesquisadores de sua obra, a Olivier de Magny, secretário de um embaixador francês e de cuja presença Labé se viu privada por sua viagem à Itália em missão diplomática. Aqui, o arrebatamento amoroso da poeta francesa desponta em imagens que expressam sentimentos ora delicados, ora furiosos, oscilando entre as fronteiras do amor e da loucura: imagens realistas forjadas por uma sensibilidade poética que nos permite vislumbrar, segundo a palavras finais de Felipe Fortuna, “o conflito de quem foi mulher, conheceu a paixão e a escreveu”.

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