facebook

Resenha de Heitor Ferraz

Folha de S. Paulo
Suplemento Mais!
Domingo, 13 de julho de 1997

____________________________________________

O poeta Felipe Fortuna distancia
seu olhar dos temas do cotidiano em
“Estante”

_______________________________________________

A PERMANÊNCIA DO ESTRANHO

Heitor Ferraz

O poeta e diplomata Felipe Fortuna acaba de publicar seu terceiro livro de poemas, no qual reúne uma produção que vem sendo desenvolvida desde 1993. Estante traz uma poética marcada pelo desencanto. Os temas do cotidiano, que estavam presentes também no livro anterior, Atrito (1992), reaparecem neste novo livro. Porém, o olhar do poeta parece que se distancia cada vez mais do objeto. Fortuna não se aproxima dele, como quem o abraçasse, mas sim o observa de longe, distante.

O leitor perpassa as três sessões que dividem o livro com a mesma sensação: de que “tudo permanece / estranhamento só e semelhante / a quem se divertiu“, como ele mesmo escreve nos últimos versos do poema “Funcionamento”.

Este poema traz, de certa forma, a marca do poeta.

Utilizando-se de uma linguagem prosaica, extremamente simples, e trabalhando dentro da poesia narrativa, Fortuna procura, neste poema, mostrar a relação que existe entre um brinquedo e um homem que quer “impulsioná-lo, movê-lo / – tudo é desejo de que alguma mola / suspenda-o, estremeça-o”. Mesmo depois de toda essa experiência, esse contato direto com o objeto – no caso, o brinquedo-, tudo retorna a um estado inercial. O contato não produziu a experiência esperada: o câmbio entre o homem e o brinquedo. Enfim, não produziu experiência, só um ato sem repercussão marcante. Houve uma efêmera diversão – e só.

Parece ser este mesmo o tom de todo o livro. Fortuna, aos 34 anos, com forte bagagem de tradutor, crítico e, claro, observador da vida cotidiana, dividiu sua obra em três momentos distintos. Na primeira parte, intitulada “(Não É)”, o poeta alinha poemas que tratam de observações cotidianas: uma cidade, as relações sociais, um desfile de moda e até mesmo uma bonita reflexão sobre uma maçã cortada ao meio; na segunda, “Poemas da Pele”, elege o tema da poesia amorosa e erótica, com corpos “sempre em luta”, seja numa simples cama ou num banco de carro; na terceira e última parte, chamada “Seres”, Fortuna articula 14 poemas numerados, escritos numa linguagem enigmática, nos quais vai retratando subjetivamente o modo de ser de um povo imaginário ou mítico.

Seus poemas (menos nos ditos “mitológicos”) não apresentam nenhuma dificuldade inicial para o leitor. São claros, demasiadamente claros. Como se ele pegasse uma situação ou um objeto e os desmontasse pouco a pouco, deixando-os descamados na frente do leitor. Esta forma de construção resulta quase sempre num poema desencantado, ou seja, que não busca criar uma cumplicidade com o leitor ou arrebatá-lo e colocá-lo num estado de suspensão.

A leitura de alguns versos finais dos poemas de Fortuna é bastante significativa. Como numa fábula, o poeta deixa para as últimas linhas a sua reflexão do que foi visto e analisado. “O texto é jamais tecê-lo, mas desfiá-lo em desafio até que reste a única linha, a última, que agora se estende com o trabalho da memória“, escreve no poema em prosa “Escrever”.

Em vários desses versos, o desencanto surge da não-porosidade dos acontecimentos. Eles não permeiam – sobra sempre uma sensação de solidão. Em “A Escola da Sedução”, poema que abre o livro, ele narra a história de uma moça “que disse aceito e se foi / para a cama durante a madrugada.” Mesmo depois do sexo, ela continua miseravelmente só: “…Acontece que ela disse/ aceito e tudo aconteceu na solidão, / num instante do qual / ela não consegue se livrar”.

Até mesmo nos poemas em que Fortuna coloca todo seu humor e ironia, o resultado deixa um amargo na boca do leitor. Um comprador de frutas que não consegue saber se algumas delas estão podres ou não, como no poema “Às Dúzias”, que termina com os versos “e as frutas se aquecem e já pertencem / a quem, ao mordê-las, terá acertado ou não”; o corpo de um modelo num desfile de modas: “O vestido que o cobriu muda a postura / de quem o vestiu e encontrou, / em vez do corpo, a teia que o prendeu“.

Na segunda parte, dedicada aos poemas eróticos, o poeta busca investigar o contato amoroso dos corpos. Aqui, ele procura aquele calor conhecido dos poemas de Vinicius de Moraes. Fortuna se aproxima dessa tradição com versos bonitos, nos quais corpo é a matéria sobre a qual ele se debruça: “Mutante, feito de formas: / corpo que nunca evapora”; “mulher mais dedicada à própria vida / mais estendida, mais nádegas”; “eu entro afago abraço alago o corpo”. Talvez seja pesado dizer que nesta seção repete-se o mesmo desencanto da primeira parte do livro. Mas tal é a repetição da palavra “corpo” neste conjunto de 15 poemas que o leitor sai com a sensação de banalização.

Não que os poemas sejam banais – Fortuna flagra situações urbanas e alcança versos de extrema beleza. Porém, o corpo é mais um objeto consumível. E também observável, assim como a maçã, assim como os estranhos seres da terceira e última parte do livro.

Em “Seres”, sua poesia ganha maior cadência, como se fossem pequenos contos e cantos mitológicos. As palavras vão se aproximando sonoramente. E seguem num “palavra-puxa-palavra”. “Eram mitológicos, ceram seres / que caminhavam outros passos / – pois os seus se perderam em pareceres.” Seguindo a tônica de sua construção poética, Fortuna é mais uma vez o observador estarrecido de uma realidade – aqui, imaginária (uma forma que ele encontrou para narrar o próprio desencanto dos homens que “conhecem também o mar / que os separa das terras / e os afoga”; onde “todas as mulheres são devorá-las / e todos os homens, desconhecê-los”; que vivem “atolados no húmus / do futuro que os lança para trás“). Seus cronópios – para lembrar Cortázar – parecem amarrados a sua própria sorte, “tensos e cansados como crepúsculos”. Mais uma vez, uma poesia encharcada de distanciamento e desencanto. Se, por um lado, a linguagem, as imagens de sua poética procuram seduzir, do outro, resta sempre a constatação da imporosidade. Como se as próprias experiências do poeta fossem matéria para a observação e não para a transformação. O livro volta para a estante “estranhamente só e semelhante / a quem se divertiu”.

____________________________________________________________

POEMA

FOTOS DE WESTON

O corpo de uma mulher

de repente, muito próximo

– transformado, monstruoso:

o corpo descobre a pólvora.

Mulher grande (muito embora

dobrada, em forma de glande).

Perigoso conhecê-la

sem início ou fim provável.

Mutante, feito de formas:

corpo que nunca evapora.

__________________________________________________________

Poema de Felipe Fortuna retirado do livro “Estante”

Print Friendly