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Resenha de José Paulo Paes

Folha de S. Paulo
Domingo, 31 de janeiro de 1993*

FELIPE FORTUNA CONSTROI POÉTICA DA ESTRANHEZA
José Paulo Paes

Se se dissesse serem a morte e a vida os dois pólos que organizam o sistema de significados de Atrito (Rio: Alarme, 1992), não se estaria dizendo grande coisa. Por ser igualmente aplicável a uma infinidade de outros livros de poesia, tal lugar-comum é anódino. Para que ele possa ter alguma utilidade hermenêutica, impõe-se ao menos delimitar o sentido que ambas as noções assumem na semântica diferencial dessa segunda coletânea de poemas de Felipe Fortuna.
Como dá a entender um dos seus poemas iniciais, “Modos de Morrer”, a morte é ali vista com uma objetividade e um distanciamento por assim dizer “clínicos”. Só que, em vez de veiculados no jargão dos médicos, corporificam-se em metáforas e oxímoros capazes de dar conta, homorganicamente, de “o que a morte tem de susto”. Semelhante distanciamento está evidentemente nos antípodas daquela ânsia órfica que, em clave de celebração ressoa na poesia de Rainer Maria Rilke, a mais prestigiosa instância moderna da poetização da morte. Tampouco nele se percebe – para citar duas outras instâncias – o que quer que seja do comprazimento quase perverso com que o expressionismo de Gottfried Benn se debruça sobre os espetáculos de degradação orgânica, ou a obsessão cientificista de Augusto dos Anjos sobre a “química feroz dos cemitérios” enquanto caminho evolucionário (ou involucionário) para o Nirvana schopenhauriano.
Se a morte não passa de um “certo acaso”, como diz um dos versos de Atrito, a vida é de igual modo uma lenta “construção de acaso”, como diz’ outro. Construção que o olho do poeta escolhe surpreender no momento muscular e energético de urna aula de ginástica a que está dedicada unia série de nove poemas nos quais erotismo e ironia confluem numa dicção particularmente vivaz. Tal confluência marca um duplo movimento – busca erótica de aproximação e consciência irônica de um infranqueável distanciamento entre o sujeito e o objeto – que parece ser a pulsão de base subjacente à visão de mundo proposta em Atrito.
Esta é formulada com particular clareza nos três “Poemas à Distância”, os quais postulam que a distância a separar as coisas umas das outras permanece mesmo quando as próprias coisas desapareçam. Constitui-se pois ela, a distância, uma espécie de “maldição” ou “problema eterno” a estremar o homem de Deus, Deus do entendimento, o desejador do corpo desejado:
mesmo quando nos servimos em festa
é com nossa distância que nos divertimos.

Dessa metafísica distância é que nasce o sentimento existencial de estranheza em face das coisas e dos seres: as coisas cuja impenetrabilidade o poema “Em-Si” busca exprimir sob a epígrafe sartreana de “O em-si não tem segredo: ele é maciço”; os seres, inclusive a mulher amada, cuja pele é a barreira contra a qual se atritam, sem jamais lograr franqueá-la, o olhar e o tacto, melhor, o olhar-tacto inutilmente perscrutador do poeta. Daí não lhe restar outra alternativa senão a de uma distanciada e objetiva “clínica” que, nos seus eventuais assomos de ir além do atrito com a superfície da realidade, arma-se de lentes da ironia para desculpar-se do seu próprio malogro. O balanço final desse atrito decepcionante está compendiado em “Anagrama”:

No instante em que se desmancha
a pele, o hálito, a dança
ouve-se o aviso enorme
de algo que invade e que envolve: é
coisa estranha, a morte.

No entanto, mesmo cansado,
mesmo com sono ou com tédio,
convivo com o que vejo,
e, frente a ela, percebo
a coisa estranha: a vida.

Filosoficamente falando, convenhamos, um balanço que tal é paupérrimo. Mas a linguagem em que vai sendo inventariado ao longo dos vinte e seis poemas de Atrito é suficientemente rica de achados expressivos para que se possa falar, no caso, de uma verdadeira poética da estranheza. O que, convenhamos ainda, não é dizer pouco.

*Texto republicado em José Paulo Paes, Os perigos da poesia (Rio de Janeiro: Topbooks, 1997), sob o título “Uma Poética da Estranheza”, p.100-103.

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