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Resenha de Marilena Felinto

Folha de S. Paulo
Suplemento Mais!
Domingo, 30 de julho de 1995
UMA POETA ALÉM DE SEU TEMPO
Marilene Felinto

Se já é estranho lembrar que, em 1500, havia poetas mulheres, mais estranho ainda é pensar que alguma entre elas escrevesse versos que tratam o corpo amoroso como coisa concreta, sensual, feita de carne e pele: “Ó riso, ó fronte, dedos, mãos e braços!/ Ó alaúde, viola, arco e compassos:/ Chamas demais para uma só mulher!”. Ou então: “Beija-me ainda, rebeija-me e beija;(…)/ E ao misturar os beijos fervorosos/ Os dois gozemos o que em nós chameja”.
Essa proeza, conseguiu-a a francesa Louise Labé (1522-1566), que escreveu 24 sonetos eróticos, testemunhos de uma “forte e estranha paixão” para sua época, conforme observa o crítico Otto Maria Carpeaux. Toda a obra de Labé -três elegias, 24 sonetos e um texto em prosa- reunida neste volume “Amor e Loucura”, sai pela primeira vez no Brasil, em edição bilíngue, com tradução e estudo crítico impecáveis do poeta e ensaísta Felipe Fortuna.

O maior mérito da poesia de Labé seria seu caráter pessoal, que a fez destacar pela expressão do desejo feminino, distinta da poesia platônica dos renascentistas, que tratava a mulher como ideal de castidade, “beleza divina a ser adorada”.

Segundo Fortuna, a obra de Labé é a história de sua vida amorosa, de uma mulher apaixonada, que se casara por dote (como cabia às mulheres de sua época) com um homem 32 anos mais velho, mas que tinha um amante, um diplomata francês, objeto de sua inspiração poética. Sobre o inusitado erotismo de sua poesia, Carpeaux conclui: “As antíteses místicas da linguagem não nos podem enganar: esse amor não é platônico”.

Louise Labé nasceu e viveu em Lyon, centro cultural da França renascentista. Filha da burguesia rica, tinha o privilégio de transitar pelo mundo das artes e das ciências e de aspirar por ideais feministas, numa época em que a única preocupação despertada pelo universo feminino relacionava-se com a castidade das fêmeas e a hipótese de elas serem ou não bruxas.

Dama para alguns, cortesã para outros, o fato é que Louise Labé foi a grande artista da elegia erótica. Segundo Carpeaux, foi ela quem recebeu as homenagens que a posteridade recusou àquele que seria o grande poeta da “escola lionesa”: Maurice Scève (1505-1564), autor de “Délie”, a maior meditação poética em língua francesa e a maior declaração de amor que se fez a uma mulher, nas palavras do crítico.

Por outro lado, Carpeaux reconhece que a poeta estava além de seu tempo, sendo na verdade uma precursora do classicismo de Racine (1639-1699). É por esse caminho que segue Felipe Fortuna, ao destacar os aspectos peculiares e originais da poesia de Labé.

Segundo ele, é poesia que não apresenta influência aparente de qualquer outro autor, ainda que seja herdeira de Petrarca na construção formal do soneto, no uso dos paradoxos. Por seu tom confessional, a elegia de Louise Labé iria além do “canto do lamento”, do poema lírico de tom triste, em sua representação do lado sombrio e desesperado do amor.

Seu único texto em prosa, “Disputa de Loucura e de Amor”, tem fundo mitológico. Trata-se de um diálogo entre seis personagens: Loucura, Amor, Vênus, Apolo, Mercúrio e Júpiter, que retrata o confronto entre o amor e a loucura (ou entre Razão e Loucura).

Fortuna aponta para a originalidade da “Disputa”, “por mais que fosse comum, na literatura da época e mesmo na medieval, o engenhoso recurso do diálogo conflitivo entre opostos”. Ele diz que o texto de Labé é original também no aspecto formal, pois “nunca a rapidez e a vivacidade dos diálogos tinham sido apresentados de modo tão contundente”

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