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Resenha de Ricardo Vieira Lima

Jornal do Brasil
Suplemento Ideias
Sábado, 1º de novembro de 1997
UM POETA ENCONTRA SUA VOZ
Ricardo Vieira Lima

Felipe Fortuna pertence à rara categoria dos poetas-críticos ou críticos-poetas. Poucos conjugam estas duas atividades de maneira harmônica, profunda e eficiente. Ainda muito jovem, Felipe Fortuna exerceu a crítica literária militante, ao mesmo tempo em que se dedicava à poesia. Estreou como poeta com o promissor Ou vice-versa (1986). Cinco anos mais tarde, reuniu no volume A escola da sedução artigos e ensaios que publicara na imprensa. Com Atrito (1992), voltou à poesia e, há dois anos, lançou-se como tradutor em Louise Labé – Amor e loucura.

Estante inaugura uma nova fase do autor. Mais: até o momento é a sua melhor obra, já que denota o enxugamento do discurso (algumas vezes excessivo nos primeiros livros) e a definitiva conquista de uma voz própria, sem a qual ninguém pode afirmar-se como poeta. Ezra Pound já advertira que “a primeira fase dos escritos de qualquer pessoa mostra o autor fazendo algo parecido com algo que ele já ouviu ou já leu”. Já se disse também que “todo artista começa imitando alguém; continua não imitando ninguém; e termina, por fim, imitando a si mesmo.” Muito natural, portanto, que Fortuna prestasse tributo às pesadas influências de Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Oswald de Andrade (e o tardio mas saudável rastro deste, à marginália poética dos anos 70), além de João Cabral de Melo Neto, poeta que mais vem agregando seguidores nas últimas décadas.

Estruturado em três partes distintas ou “três diferentes livros”, como bem salienta o professor e poeta Adriano Espínola nas orelhas da obra, Estante abre com uma seção reunindo poemas do cotidiano do autor. A solidão e suas variantes, tema recorrente na obra de Fortuna, comparece em diversos momentos do livro, ainda que sob a ótica do confessionalismo amoroso (“A Escola da Sedução”), da vida urbana cosmopolita (“Cidade Irreal”) e da própria reflexão poética (“Esta Espuma” e “Não É”). Neste último aspecto, inclusive, é imprescindível ressaltar a modernidade de um poema como “A Tela do Texto”, talvez a primeira metapoesia cibernética da literatura brasileira. “Agora já não sei / se este poema é meu: / na tela, sem papel, as palavras / se formam sobre a luz azul e falsa. / (…) Sou guiado e consigo / escrever na minha língua / com shift, pause, control, enter, quando preciso / escrever sobre a impressão / que me causa a espinha de um peixe.

Em “Poemas da Pele”, segunda parte do volume, o poeta celebra o corpo feminino e o próprio ato amoroso nos belos versos de “Os Dois” (“Quando dois corpos se abraçam, / dois corpos abraçam tudo”) ou na primeira estrofe do primoroso soneto “Ars Amatoria”: “Nessa cama latina feita para /amantes, dormiremos muito em breve / o sono que se fez de pele rara / (a pele que se faz com nossa pele)”.

Nos quatorze poemas narrativos de “Seres”, terceiro e último bloco de Estante, Fortuna cria sua mitologia particular, a exemplo de Jorge Luís Borges: “Os olhos desses seres são enquanto. / As bocas desses seres são além. / E junto a eles a visão e o canto / são as íris e os seus dentes também.” Em versos inusitados, mas plenos de musicalidade, o poeta enfim adverte que “nunca adiantará aos sinos que soam / soar/ pois mais sonoro é o suor. / E sobre cada caminhada estreita / só resta o pó da estrada e o da ampulheta.

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