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Resenha de Rosalvo Acioli Júnior

Jornal de Alagoas
Domingo, 26 de julho de 1987

FELIPE: FORTUNA DA PALAVRA
Rosalvo Acioli Júnior

Embora existam diversas tendências e características (comuns ou não) na concepção formalista da poesia brasileira atual, pode-se afirmar, sem receio de incorrer em risco, que a produção poética não se assenta no experimentalismo estéril nem na bricolagem travestida, estagnados de fórmulas e preceitos, truques comumente utilizados pelos que berram que as suas “artes profissionais”, queiram ou não e que, em qualquer época, serão sempre as eleitas (sic). (Meros atos de psicopatia).
Afastadas as falsas qualidades do truque literário – tão presentes e identificados nos diferentes gêneros –, por sua vez estão verdadeiros e criativos poetas a realizar a poesia viva e evolutiva da literatura brasileira.
Nesse especial, serve de exemplo a poesia de Felipe Fortuna, talento literário e capacidade poética, à frente com seu livro de estreia Ou Vice-Versa, cuja tradição e transgressão se renovam e repercutem. Não é um poeta fácil nem popularizável, uma vez que o seu artesanato e a consciência da sua produção o tornam incomum. Um ou outro poema menos significativo em nada desmerece a sua condição de poeta superior e, por conseguinte, a sua poesia é bem realizada, nutrida pela emoção e pelo ideal estético de quem sabe exercer a palavra com estilo. Felipe Fortuna enfrenta a multiplicidade de desafios existenciais e artísticos com a certeza de que o silêncio e a palavra são as salvaguardas do seu ser, a desdobrar-se “no avesso reinício” do poema que, por contradição, “constrói um precipício” – eis o que revela nos últimos versos de “Biografia”. A realidade passa a ser a de uma busca do essencial, do originário, da consciência que recusa o irredutível, a ilusão e o possível, mas que defronta o estado de obscuridade. No poema “Os Dois Corpos”, Felipe Fortuna, consciente da contradição da natureza humana, em que um corpo está-no-mundo e o outro quer se fazer no mundo, se pergunta:
Ah meu corpo meus dois corpos
– qual dos dois é o que persigo?

Ele descobre que mundo sentido não é aquele que conhecia antes, mas o seu novo contexto, o seu vice-versa, restaurado pelo silêncio e, por extensão, pela linguagem que faz coexistir no poeta um realista e um subjetivista – uma alma feliz e triste (mais triste que feliz).
O mundo é – o que é através do artista. Se Felipe Fortuna processa a sua criação poética pelos meandros do silêncio, o faz com inteligência e com poderosa imaginação, realçando a sua espontaneidade e travando, a meio dos seus versos, semidiálogos consigo mesmo, ou com as coisas, ou com os seres. Seus poemas são instigantes, ricos de intuição, que evidenciam expansões zangadas, niilistas, tristes, com relações vocabulares ritmadas conscientes e engenhosas, que revelam uma plasticidade extremamente significativa.
Alguns versos trazem uma temática amorosa, outros, social, ou ainda de desregramentos, em expressão contida, trabalhada, densa. O poeta constrói as suas finuras com a evocação das sensações, como o que exemplifica a parte final do poema “Menina Morta”:
Só sei que morreste com segredos,
Pois o mundo é a doença mais secreta.

– imagem admirável; ou mesmo o sentimento depurado no poema “Latente”, em que se refere ao processus da criação, que diz nos penúltimos versos:
O tempo de envelhecer um pássaro
(antes disso, enevelhecer o voo),
esse tempo se entrelaça às pedra:
entrelaçou-me.

A eleição do silêncio na poesia de Felipe Fortuna é o plano crucial do seu sentimento de solidão, do seu cansaço da linguagem mundana, brutalmente artificiosa e burocrática, subprodutiva, esgotada pela ausência de crítica (e autocrítica) objetiva da vida moderna.
Esse fading (de experiência dolorosa), em que as perdas estão contidas na representação do silêncio e da morte, faz, entretanto, Felipe Fortuna sobrelevar o seu estado de contradição e afirmar-se pela natureza do silêncio. Através dele o poeta descobre a experiência pré-reflexiva do mundo, em que o ato poético rimbaudiano “on me pense” tema a sua afirmação na palavra – que para Hegel é o “sacrifício da coisa”, de que o poema se faz e constitui a ação poética.
Felipe Fortuna, por sua sensibilidade, por seu talento, vem juntar-se à família dos autênticos poetas, com sua poesia afinada, em especial com afinidades a Fernando Pessoa, ou a Lucien Becker, ou a João Cabral de Melo Neto, afinidades estas que não alteram a originalidade da produção poética deste seu maduro e surpreendente Ou Vice-Versa.

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