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Resenha de Wilson Bueno

O ESTADO DE S. PAULO
Caderno 2
Sábado, 4 de novembro de 2000
ANOTAÇÕES CRÍTICAS E POÉTICAS DE FELIPE FORTUNA
Os ensaios de Visibilidade são uma resenha de situações contemporâneas

Wilson Bueno

Empreender uma leitura acurada dos mitos de nosso tempo – da impagável Ciciollina (Fofinha, em italiano) que no fim dos 80 agitou a mesmice da vida política italiana, com o singular mix de atriz pornô e parlamentar, ao humor terrível do genial Chas Addams e seus sombrios cartuns destinados a provocar mais que riso, o pânico, não é tarefa nada fácil. A segunda metade do século 20, sabemos, copiosa em mitologias, sobretudo depois da TV e da Internet, se de um lado prodigaliza os temas, de outro, estreita e embaralha consideravelmente o campo de reflexão.

O poeta e diplomata Felipe Fortuna, frente à desafiadora tarefa, não se fez de rogado, e com esse VisibilidadeEnsaios sobre Imagens e Interferências, reuniu 23 pequenos ensaios, alguns deles originalmente veiculados na imprensa brasileira, e arriscou-se a decifrar o segredo da esfinge. O olhar é o de um crítico da comunicação, animado pelo propósito claro de dar forma ao quase insondável caos em que se multiplicam as mitologias de nossa época. A busca de uma singularidade reflexiva toma-se ainda mais complexa se levarmos em conta um ruidoso precedente – o clássico Mitologias, de Roland Barthes, quando nunca um pensador foi tão fundo na busca da decifração dos “enigmas” de nosso tempo, estabelecendo ali possivelmente um códice diante do qual só a ousadia de um poeta da qualidade de Felipe Fortuna para, senão desafiá-lo, repropô-lo desde uma ótica brasileira, e nem por isso menos universal.

O resultado, em muitos casos, é animador – ao pesquisar a crônica dos obituários da imprensa inglesa, por exemplo, Fortuna rastreia, com visada de poeta e penseur, o que essa já histórica prática, sobretudo dos jornais e revistas londrinos, têm de melhor – comunicar a todos que o recém-morto superou, hosanas!, a árdua tarefa de viver. Não importa se anônimos ou ilustres, os sujeitos dos obituários britânicos passaram desta para outra, e repousa aí – em que pese a redundância -, desde já, a sua glória e a consequente minimização de todos os seus defeitos.

Percebendo a sutil comicidade dos peripatéticos obituários, Felipe Fortuna realiza nas poucas páginas de “Notas de Falecimento” um paideuma do que o gênero produziu de mais intrigante – do inacreditável obituário do marginal brasileiro Flávio Negão, no jornal The Guardian, ao da socialite Cecile de Rothschild. Analisando com profundidade, e feliz síntese, os ritos desse gênero de comunicação, Fortuna vai sobretudo ao âmago de sua linguagem, mesmo ali onde, em elipse, ela quer dizer muito mais do que elide. O obituário de la Rothschild, por exemplo, finaliza com a seca informação de que “não casou”, isso depois de várias linhas em que se destaca a sua diligente amizade com Greta Garbo. A bom entendedor duas palavras bastam, ainda que para os econômicos ingleses, a quem certamente devemos a invenção dos obituários, em determinados casos, duas palavras soem excessivas e digam menos que uma…

felipCartuns – Filho de um dos mais inventivos cartunistas brasileiros, o saudoso Fortuna, que nos tempos áureos do Pasquim criou, entre outros personagens antológicas, Madame e seu Bicho Muito Louco (quem esquecer há de?), Felipe não poderia deixar de prestar homenagem aos gênios do traço.

Assim, de Borjalo e suas vaporosas linhas, para, serem “lidas” de um só golpe, e como que inscritas de uma só vez, a Chas Addams, com as desproporções e disparates destinados a evidenciar o absurdo da vida, passando pelo humor sem esperança do argentino Quino, além do bergsoniano e corrosivo Reiser, o autor de Visibilidade nos dá, em quatro ensaios que se colocam como o ponto alto do livro -, judiciosa panorâmica do que esses artistas produziram de melhor. Ao mesmo tempo, verticaliza gozosa reflexão sobre um gênero muitas vezes desprezado pelos intelectuais de plantão, e que diz mais de nossa época do que supõe a, igualmente nossa, vã e sôfrega filosofia… Embora alguns dos textos de Visibilidade não tenham alcançado vencer o tempo, como os dois destinados ao bug do milênio (lembram-se?…) e o ensaio consagrado ao inflacionado dinheiro tupiniquim “sem nenhum caráter”, com as notas “homenageando” Machado de Assis, Drummond, Villa-Lobos (ainda uma vez, lembram-se?…), no geral, Felipe Fortuna logrou construir um belo e oportuno livro E o que é melhor, e deve ser logo destacado – vazado na sedução da linguagem que só um “poeta do pensamento” é capaz de informar.

Wilson Bueno é autor de Mar Paraguayo (Iluminuras) e Meu Tio Roseno, a Cavalo (Editora 34)

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