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Roberto Piva: Pivô da Anarquia [1]

É certamente meio ridículo que um poeta apresente em nota biográfica “um antepassado cavaleiro que combateu nas Cruzadas” e que “virou herético & começou a pregar a favor do Demônio”, como fez Roberto Piva. O fato, em si, não passaria de um episódio anedótico, caso o poeta paulista não acreditasse verdadeiramente (para não dizer piamente) que representa, ou melhor, que é um poeta maldito, acrescentando: “Só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental”. O que caracteriza a condição de marginalidade não é propriamente a escolha de temas pouco ortodoxos, mas sim a transparência entre o objeto artístico (a obra) e a prática da autobiografia, eliminando as fronteiras entre os dois. De Aretino a Jean Genet, de Gregório de Matos a Jack Kerouac – certa atitude confessional é imprescindível para o adensamento da marginalidade. A mera intenção de ser marginal, acontecimento tão valorizado por poetas que querem pelo menos salvar a vida, pois o que escrevem é mesmo medíocre, corresponde a um evidente artificialismo. No caso de Roberto Piva, desnecessário: sua poesia escapou aos truques fáceis que marcaram boa parte da produção poética dos anos 70; ao mesmo tempo, fez retornar uma tradição ligada às tendências surrealistas e surrealizantes, que há muito tinham sido trocadas por um discurso caótico, afastado conscientemente da pretensão literária. Já com a publicação do primeiro livro, Paranoia (1963), Roberto Piva apresentava um conjunto de influências bastante razoável – com o que se afastava da noção de “vazio cultural” que iria imperar nos anos seguintes. Assim, sua poesia declara uma revolução relativa até mesmo à geração em que estava inserido, conforme escreveu num dos 20 Poemas com brócoli (1981):

Sou um navio lançado ao 

alto-mar das futuras 

combinações.

A promoção da anarquia, contudo, não é uma bandeira solitária da sua poesia. Roberto Piva logrou conciliar ao seu tom visionário uma qualidade por vezes incompatível com as propostas radicais – a da erudição. Não se trata, no seu caso, de resgatar escritores conformados às estéticas literárias, nem mesmo de limitar as influências à literatura, alargando-as à música e às artes plásticas. Entretanto, à diferença da contestação cultural daquele instante, sua poesia apresenta uma linhagem artística nem sempre conhecida ou assimilada pela literatura brasileira. E é com ela que Roberto Piva intensifica a sua desordem: a intenção anárquica seria tão-somente uma curiosidade literária se não estivesse balizada pela intenção de criar, paradoxalmente, uma tradição – embora renovada. Assim como os poetas concretistas são essencialmente importantes porque fizeram surgir autores nunca dantes frequentados pelos nautas do Brasil, Roberto Piva refere-se à existência dos expressionistas alemães, de certa literatura mística (como a do alemão Jacob Boëhme) e de obras quase esquecidas (por exemplo, a de Thomas de Quincey) que, por si, remodelam o panorama das influências possíveis sobre a poesia brasileira.

Seus poemas são quase sempre curtos, fragmentados – mas jamais episódicos. Talvez lamentavelmente, sobretudo para quem reclama da existência de ordens e normas, surpreende a coerência de sua obra ao longo de mais de vinte anos. Sua técnica é surrealista, crivada de versos grandiloquentes que apelam para todos os sentidos, a exemplo de

onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorroidas das beatas

e muitas vezes não escondem um sentimento de justiça social e declaram o vínculo ao lirismo convulsivo de um André Breton. Ao mesmo tempo, versos mais meditativos aparecem:

o mundo continua sendo um breve colapso logo que as pálpebras baixem.

Tudo isso de par com incessantes imagens sexuais, todas violentas, todas contrastadas, de um lirismo todo físico:

só acredito na geléia genital.

Na tradição da poesia erótica brasileira, Roberto Piva é de uma importância única. À parte as produções declaradamente fesceninas, ou ainda de cunho pornográfico, poucos foram os poetas que relataram a condição homossexual. No seu caso, a predileção estética é mesmo exacerbada e obsessivamente referida, a ponto de servir de título a um de seus livros, o eloquente Coxas (1979). Ao seu redor, ele reuniu uma confraria sexual formada por Lautréamont (citado a propósito de seu amor pelos “pálidos adolescentes”), Rimbaud, Georges Bataille (em referência sutil à pederastia) e até mesmo Dante Alighieri, referindo-se ao cenário dos sodomitas condenados ao Inferno. Mais uma vez, a qualidade de seus poemas se deve menos à suposta radicalidade que ao bom arremate literário. Mesmo porque as perversões citadas não são inéditas nem mesmo nos clássicos modernos. Já Drummond, em “O Sátiro”, escrevia:

Hildebrando insaciável comedor de galinhas. 

Não as comias propriamente – à mesa.

Ou então, mais coerente com o gosto poético de Roberto Piva, recorde-se o belo poema “Rapto”, em que, num laborioso trabalho de imagens, Drummond comenta o amor entre homens, “outra forma de amar no acerbo amor“. Também Roberto Piva, em “Ganimedes 76”, renova o mito da homossexualidade, e em outro poema, num de seus versos mais delicados, escreve:

suas coxas latejam de tesão & calma.

Roberto Piva é, no plano da poesia brasileira, um executante das partituras deixadas na última fase de Murilo Mendes e Jorge de Lima. Os dois poetas são decerto os menos compreendidos do Modernismo – isso porque, tendo escrito obras “típicas” na eclosão do movimento, optaram mais adiante por caminhos intensamente pessoais. Murilo Mendes foi o mais surrealista, ainda que agitado por indagações religiosas que apenas radicalizaram a sua poesia visionária. Jorge de Lima, porém, fez proeza maior: fundiu-se ao Barroco, especialmente em Invenção de Orfeu (1952). Se for de fato correto apreciar na poesia de Roberto Piva uma estética da fusão, em que várias tendências artísticas se cruzam, não é menos lícito registrar que, quase sempre profana, sua poesia é também agitada por uma teologia atormentada, que inaugura o

Delirium Tremens diante do Paraíso.

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[1] Suplemento Ideias, Jornal do Brasil, 24.1.1987

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