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Stoppard! C’est Magique*

Ausente das livrarias brasileiras, talvez só conhecido pelo roteiro do filmeShakespeare Apaixonado, Tom Stoppard é o principal convidado da FLIP. Sua dramaturgia é erudita e complexa, com tramas exigentes pela quantidade de referências culturais e de alusões a livros e autores. No artigo a seguir, em forma de esquete, explica-se um pouco da vida e da obra do escritor.

Ato Único

Um escritório elegante e luminoso, com estantes repletas de livros. Um grande retrato de J. K. Rowling está pendurado na parede. Pela janela, vê-se Paul McCartney entrando num edifício de Soho Square.

LIZ CALDER (ao telefone) – Alô? Mister Stoppard? Como vai, aqui é Liz Calder, da editora Bloomsbury… Eu gostaria de conversar… (É interrompida, e passa um tempo a escutar a voz ao telefone): Sim, “Harry Porter e a Câmara dos Segredos”, fui eu que editei sim, e também outros seis volumes… por exemplo, “Harry Porter e a Ordem do Fênix”… (Muda de tom): Eu criei um festival literário em Paraty, uma pequena cidade do Brasil…

Ao som da palavra Brasil, acende-se um forte facho de luz sobre o rosto de Tom Stoppard, surpreendido e levemente assustado. Está sentado num banco de Sidley Park e fala ao celular.

TOM STOPPARD (pausadamente, em tradução de Millôr Fernandes) – Brasil? Você disse Brasil? Mas que língua se fala no Brasil? Quando escrevi o roteiro de Brazil, o filme, esqueci de perguntar…

LIZ CALDER – Lá se fala a língua portuguesa. Eu mesma também falo português. É um festival parecido com Hay-on-Wye, mas o clima é muito melhor. Pode perguntar ao Julian Barnes. Ele até escreveu que Paraty “é lugar de beija-flores, paralelepípedos escorregadios, camarões frescos e inverno brasileiro (muito mais saudável do que o verão britânico)”. É uma festa para escritores e leitores!

TOM STOPPARD (hesitante e parecendo confuso) – Ah, sim, eu me lembro do artigo… mas ele também escreveu que Paraty conta com “ladrões ágeis”, que roubam qualquer coisa…1

LIZ CALDER (interrompendo-o) – Nada disso, são todos muito cordiais, são todos muito amigos! O ambiente é ótimo… Vários debates… É uma cidade muito cultural: a mãe do Thomas Mann viveu lá! E eu quero convidá-lo para ser o principal escritor deste ano no festival…

TOM STOPPARD (interrompe-a também, mas fala pausadamente) – Mas, minha querida Liz Calder, algum livro meu já foi traduzido para a língua portuguesa? Eu creio que nenhum livro meu foi publicado no Brasil… Talvez nenhum na América do Sul – o Brasil fica na América do Sul, não fica?

LIZ CALDER (enfática) – Fica sim, é o maior país da América do Sul! Andaram escrevendo que o FLIP só traz autores estrangeiros que fazem a festa em língua portuguesa, mas agora isso vai mudar! Todos querem discutir, fazer perguntas! E o pessoal lá gosta muito de você!

TOM STOPPARD (insistente) – Gosta de mim? Mas conhecem meus livros e minhas peças?

LIZ CALDER (triunfante) – Conhecem o filme “Shakespeare Apaixonado”!

Apaga-se o forte facho de luz. Em outro plano, dois editores brasileiros estão no Real Gabinete Português de Leitura e conversam sobre a obra de Tom Stoppard.

PEDRO PAULO DE SENA MADUREIRA – Eu adoro “O Litoral da Utopia”… Uma maravilha… Com a história de vários intelectuais e revolucionários russos, Tom Stoppard consegue mostrar que a História é ironia em movimento… É sensacional o retrato que faz de Alexander Herzen, dividido entre a ação radical e os limites do terror… (Pensa em voz alta): Um dia, se eu publicar a trilogia, vou precisar da ajuda do Ivo Barroso. “The Coast of Utopia”… Coast pode ser litoral, mas também fronteira… Sensacional… Nove horas de puro deleite…

JOSÉ MARIO PEREIRA – Tenho comigo os três volumes de “The Coast of Utopia” e lamento que ainda não tenham disponibilizado a obra em DVD. Seria fantástico se o Millôr Fernandes topasse uma conversa pública com Tom Stoppard. Só não consigo entender o convite ao dramaturgo: além do roteiro de “Shakespeare Apaixonado”, os brasileiros só conhecem a versão em DVD de “Rosencrantz e Guildenstern estão Mortos”, que não se encontra mais nas boas lojas, porque foi editada numa coleção de banca, e hoje, com sorte, é vendida no saldão das Lojas Americanas. Mas eu pensava que você fosse atraído, mesmo, pela peça “A Invenção do Amor”.

PEDRO PAULO DE SENA MADUREIRA (olha para o teto do Real Gabinete Português de Leitura e fala em tom solene) – Essa é uma obra-prima, meu caro! Um dos monumentos da dramaturgia da nossa época. Magnífica, magnífica! A vida do eminente latinista de Cambridge, A. E. Housman, sobre a qual Tom Stoppard escreve uma linda peça de amor e de amargura… Você lembra do início da peça?

JOSÉ MARIO PEREIRA (impaciente) – É claro que lembro: Caronte já está levando A. E. Housman na barca dos mortos, pelo rio Styx, e ainda espera por outra pessoa que acabara de morrer, “um poeta e um erudito”. E então o professor afirma que ele é tanto o poeta quanto o erudito…

PEDRO PAULO DE SENA MADUREIRA (em voz alta) – Isso mesmo, e então estamos diante de uma pessoa que é, no fundo, duas pessoas: um dos maiores classicistas da era vitoriana e, ao mesmo tempo, um homem dilaceradamente apaixonado por Moses Jackson, que era atleta e estudante de engenharia em Oxford! O amor grego, intenso, em plenitude! Amor que nunca foi correspondido, pois Moses Jackson acabou casando-se com uma moça… (Lacônico): A. E. Housman soube do casamento por outras pessoas… seu amante nunca lhe escreveu sobre o assunto.

JOSÉ MARIO PEREIRA – A história de “A Invenção do Amor” é muito engenhosa, mas ninguém sabe disso em Paraty! Além das ironias culturais, das piadas biográficas, ainda é preciso lembrar que talvez o maior personagem da peça nem seja A. E. Housman, mas sim Oscar Wilde!

PEDRO PAULO DE SENA MADUREIRA – Isso é verdade, o espalhafatoso Wilde… Ele é mesmo uma presença contínua na peça, sempre em oposição à vida solitária, monótona e acadêmica do professor de latim… O encontro entre os dois é um primor de emoção, sem falar na lição de vida que o escritor irlandês acaba dando em A. E. Housman, como um herói da vida em excesso…

JOSÉ MARIO PEREIRA (interrompendo) – Para mim, a cena mais intensa é aquela onde A. E. Housman reposiciona uma vírgula num poema de Catulo sobre o casamento dos pais de Aquiles, restaurando assim o sentido original…

PEDRO PAULO DE SENA MADUREIRA – Sim, Tom Stoppard consegue extrair humor e dramaticidade desses pequenos episódios de erudição… Mas, no Brasil, Catulo só mesmo o da Paixão Cearense…

JOSÉ MARIO PEREIRA – Mas eu não me preocupo apenas em ler e decifrar a obra dele. Também a vida do homem é complicada! O maior dramaturgo britânico vivo nasceu, de fato, na cidade de Zlín, então Tchecoslováquia, em 1937, com o nome de Tomáš Straüssler! Vai completar 71 anos em Paraty, no dia 3 de julho! Aos 2 anos, escapou dos nazistas e foi com a família judia para Cingapura! Mas, em 1942, a mãe fugiu da invasão japonesa, e foi para a Índia, levando consigo Tom Stoppard e o irmão. O pai ficou para trás e foi morto!

PEDRO PAULO DE SENA MADUREIRA – Quem foi que te contou? Como é que você sabe tudo isso?

JOSÉ MARIO PEREIRA – Está num livro que encomendei e chegou ontem. Também comprei um para a Maitê Proença! Mas não pára por aí não: três anos depois da fuga, a mãe dele se casou com um Major britânico, Kenneth Stoppard, que deu o sobrenome aos filhos do primeiro casamento… Agora, escuta esta: quando a mãe morreu, aos 85 anos, Tom Stoppard recebeu uma carta do padrasto na qual pedia que retirasse “Stoppard” do nome. Não é possível que isso deixe de ser também transformado em peça, que ninguém lerá no Brasil…

Apagam-se as luzes do Real Gabinete Português de Leitura. Projeta-se um filme na parede, onde se vê um homem com sunga.

PIERRE BAYARD (aparece à beira da piscina, na Pousada Antígona, e fala nervosamente) – Agora entendi por que fui convidado para o Festival Literário Internacional de Paraty. Eu escrevi Como Falar dos Livros que Não Lemos. E o principal convidado é Tom Stoppard, autor desconhecido no Brasil – pelo menos em língua portuguesa! Como será que vão fazer perguntas a ele, se ninguém leu a obra? Vou logo autografar um livro meu para ele, e vender o resto para a platéia.

Caminhando pelo pátio da Pousada Antígona, surge um homem com calça preta de linho e camisa social branca.

LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO (com um saxofone na mão) – As peças de Tom Stoppard são sempre banquetes intelectuais, pratos sofisticados e saborosos que também alimentam. Não estou exagerando: foi ele quem escreveu o roteiro de Vatel – Um Banquete para o Rei, com Gérard Dépardieu no papel de cozinheiro de Luís XIV. Admiro “A Invenção do Amor”, e considero magnífico o filme “Shakespeare Apaixonado”, ainda mais com a presença de Gwynet Paltrow, a única atriz do mundo que continua linda de bigode e cavanhaque. Eu vou tentar explicar à platéia quem é Tom Stoppard. E talvez possa perguntar como é a relação do escritor com a língua inglesa.

GERALD THOMAS (surge pendurado no candelabro do Real Gabinete Português de Leitura, envolto em fumaça, em pose de fantasma da ópera) – Nunca me perguntaram como era minha relação com a língua inglesa! Nem com a alemã! Nem mesmo com a língua portuguesa, última flor do Lácio! Minha pergunta é: Tom Stoppard é tão importante quanto Samuel Beckett? (Fica em silêncio, sempre envolto em fumaça, e depois fala agitadamente, dissipando-a): Tom Stoppard escreve um mundo de palavras, e parece intoxicado com elas. Já Samuel Beckett escreve poucas palavras, mas parece intoxicado com o mundo.

LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO (encosta o saxofone na parede, senta-se diante de uma mesa e começa a desenhar As Cobras) – Bem, Tom Stoppard deve muito à primeira produção britânica de “Esperando Godot”, dirigida por Peter Hall. Ele mesmo disse que a montagem foi o catalisador da dramaturgia britânica moderna. Depois disso, o escritor desembestou: sua paixão por enigmas e charadas teatrais criou um novo estilo, que mescla o questionamento moral de Bernard Shaw e as incongruências de Eugène Ionesco. Fico impressionado com a peça “Arcadia”, muito inventiva e engraçada, repleta de zombarias, trocadilhos, aquelas pirotecnias verbais que só mesmo Tom Stoppard tem coragem de fazer. Ele parece um autor fascinado com a filosofia lingüística de Wittgenstein e de A. J. Ayer. Além disso, os diálogos nesta peça estão cheios de associações verbais e transgressões sexuais. E eu me pergunto como pode um escritor montar uma trama tão intrincada, e ainda assim ser engraçadíssimo. Uma das personagens é uma moça muito inteligente que busca resolver o último teorema de Fermat, ao mesmo tempo em que questiona a Física newtoniana e sente na pele e no amor os efeitos da Segunda Lei da Termodinâmica…

PIERRE BAYARD (encantado com a explicação) – Monsieur… O senhor também leu “Travesties”?

LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO (sempre desenhando) – Sim, e gosto muito da peça, uma história arlequinal sobre temas históricos, ou sobre a colisão acidental da arte e da revolução. Em plena Zurique de 1917, acontece o encontro entre o dadaísta Tristan Tzara, o escritor James Joyce, pedante como só, e Vladimir Lênin, no papel de bibliotecário. Todos se envolvem num debate frenético sobre estética, com ataques à arte burguesa e saudações veementes ao niilismo. Tudo isso, bem entendido, é contado a partir da memória entorpecida de um funcionário do Consulado britânico, que existiu tanto quanto aquelas figuras… Porque o tema forte dessa peça é a decadência… É uma paródia de “A Importância de Ser Honesto”, de Oscar Wilde, com muitas citações e situações, quase todas verdadeiras: incluindo a da participação do funcionário consular como ator… (Refletindo): Essa mania do Tom Stoppard de buscar idéias em personagens menores não pára. “Rosencrantz e Guilderstern estão Mortos” se inspira nos dois amigos de infância de Hamlet, onde o príncipe é aparentemente secundário e toda a história parece invertida…

Ouve-se uma explosão. Cerca de dez pessoas, em círculo, levantam o corpo de um homem cabeludo.

AUGUSTO BOALStop! Todo mundo parado, pois eu quero falar! Vocês percebem que o verdadeiro Teatro do Oprimido não é aquele que oprime a platéia? Alguém acha que A. E. Housman, Oscar Wilde e Pierre de Fermat eram oprimidos? Por que deixá-los falar? E por que levar Tom Stoppard a Paraty? Para oprimir a platéia do FLIP, para vê-la formular perguntas sem conhecimento de causa? (Exaltado): Quero transformar essa platéia em protagonista da ação dramática! Sei que ao liberar a platéia da sua passividade, poderei liberá-la de outras opressões! Por que não falam do centenário de Guimarães Rosa? Por que não prestam homenagem a Aimé Césaire, poeta revolucionário e tropical?

MILLÔR FERNANDES (lendo Satyricon no restaurante do mesmo nome) – Tudo isso está ficando intraduzível. É aí que eu entro! (Interrompe a leitura): Considero o Tom Stoppard o maior teatrólogo do século XX. E até tentei superá-lo, modestamente. Ele escreveu e montou o “Hamlet em 15 minutos”. Eu reduzi o Hamlet a 15 segundos. Ficou assim: “Entra Hamlet: ‘To be or not to be’ (cai morto). Horácio: O resto é silêncio.”

Sala de estar de um apartamento em Bolton Gardens, Londres. Um escritor brasileiro recebe Tom Stoppard, escutando-se ao fundo uma canção interpretada por Emilinha Borba.

IVAN LESSA (imitando a voz de Orlando Silva) – Eu também fui convidado para ir a Paraty, balneário primitivo do meu Bananão. Mas estou fora. “Vou-me embora pra Cascais”, como canta o Dorival Caymmi. Lá em Cascais, “Esperando Godot” se chama “Não Sei Mesmo se Vem”. (Assobia). Tô fora.

TOM STOPPARD (exaltado) – E eu estou dentro. Afinal, eu fiz o filme Brazil! “Não posso morrer sem nunca ter visitado a América do Sul”, como já declarei ao jornal O Estado de S. Paulo! Paraty fica em São Paulo?

IVAN LESSA (levanta-se para trocar o disco de vinil) – Todo bom rapaz merece atenção. (Repete a frase anterior em perfeito inglês). E esse rapaz vai gostar da minha terra, onde canta o carcará. O Brasil é o único país do mundo onde não há diferença entre sinônimos e antônimos.

FIM

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* Jornal do Brasil, caderno Idéias & Livros, 21 de junho de 2008.

1 Julian Barnes, “When Eriqui hit Parati”, The Guardian, 16 de agosto de 2003. O trecho final do artigo é este: “It was not just writers and readers, but also nimble thieves, who found the festa legal.

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