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Trecho do prefácio para Areopagítica

JOHN MILTON E A LIBERDADE DE IMPRENSA

Felipe Fortuna

1. O surgimento da Areopagitica está vinculado a um drama pessoal de John Milton (1608-1674). Casando-se em 1642 com Mary Powell, que na época tinha 17 anos, ou seja, metade da idade de seu marido já famoso, Milton assistirá perplexo à fuga de sua mulher para a casa dos pais, em Oxford. Foram em vão as cartas que enviava a ela, exigindo o seu retorno: a moça só estaria reunida ao seu marido, em Londres, dali a três anos. Humilhado e severamente ferido em seu orgulho, o poeta inglês começou a compor um dos documentos mais modernos sobre um direito essencial das pessoas – não a Areopagitica, mas sim The Doctrine and Discipline of Divorce (1643). Incapaz de resolver a contento os seus problemas domésticos, o recém-casado John Milton defendeu com vigor a ideia de que a incompatibilidade de temperamentos entre homem e mulher é o maior obstáculo à continuidade do vínculo matrimonial. Para ele, o casamento é primordialmente uma união espiritual, não sendo admissível, portanto, que o divórcio fosse exigido somente em casos de comprovado adultério, provocado por uma falta de reles natureza “física”.

A defesa do divórcio provocou reações no Parlamento inglês, que estimou mais do que adequado dar continuidade à ideia de restaurar a censura prévia aos livros, decisão que fora abandonada em 1641 por haver sido considerada ilegal e tirânica. Em 14 de junho de 1643, no mesmo ano em que John Milton publicou a edição aumentada do seu tratado sobre o divórcio, foi promulgada uma “Parliamentary Ordinance for Publishing”, que visava livros difamatórios à religião e ao governo. Preocupadíssimo com o efeito que uma lei contra a liberdade de pensamento e de imprensa poderia ter na mão de seus inimigos, sobretudo presbiterianos, o puritano John Milton se opôs duramente à Ordenação de 1643 e ao ataque desferido contra as suas ideias sobre a dissolução da vida conjugal. As restrições, como previa ele, continuariam: em 13 de agosto de 1644, tendo tomado conhecimento das idéias do poeta inglês sobre divórcio, o líder da Assembléia Herbert Palmer, em plena sessão conjunta do Parlamento e da Assembleia de Westminster (esta composta basicamente de religiosos), exigiu que a edição do “livro perverso” de John Milton fosse queimada. Dias depois, a Câmara dos Comuns instruiu o Comitê de Imprensa a iniciar diligências para proibir autores, impressores e editores que publicassem livros contra a imortalidade da alma e sobre o divórcio.1 Foi nesse contexto que John Milton escreveu o seu “discurso pela liberdade da imprensa ao Parlamento da Inglaterra”.

Publicada em novembro de 1644, Areopagitica está marcada por uma batalha parlamentar. Na época, os presbiterianos tentavam impor a sua orientação no tratamento das questões políticas e religiosas, o que acabou provocando intensas discussões sobre o tema da tolerância. A maioria dos puritanos, dentre os quais John Milton, mostrava-se favorável ao estabelecimento de uma ordem nacional presbiteriana que substituísse o Episcopado. A questão polêmica era saber se deveria haver autonomia da Igreja em relação ao controle parlamentar. Para John Milton, o elogio da liberdade de imprensa significava não apenas a valorização do exercício livre da atividade intelectual, mas também um ataque aos presbiterianos que, assim, viam questionados os princípios do pensamento calvinista e o poder que haviam alcançado no Parlamento. No seu panfleto, o escritor inglês não explorou suficientemente o problema da tolerância, preferindo calar-se sobre o poder que o magistrado ou a autoridade civil deveriam ter na religião. John Milton, assim, deixou de lado a questão do relacionamento entre Igreja e Estado, ainda que este constituísse um aspecto crucial do assunto que muitos outros pensadores examinaram – e se concentrou no tema da iniquidade da censura prévia. Com o avanço gradual dos presbiterianos no Parlamento, o orador passou a se alinhar cada vez mais com a minoria dos independentes, ou congregacionalistas, que se opunham à uniformização das congregações religiosas. A defesa da liberdade de expressão, no entanto, não constituía uma novidade no pensamento de John Milton: já em Reason of Church Government (1641), ele definia aquela liberdade como “the best treasure of a good old age”.2

Com Areopagitica, portanto, o objetivo de John Milton é obter da Assembléia, majoritariamente presbiteriana, a anulação da “Ordinance” de 1643, que impôs a censura prévia na forma da obrigatoriedade de autorização e registro para publicação de qualquer material escrito.3

O título do panfleto faz referência explícita ao Areopagiticus do orador ateniense Isócrates (escrito provavelmente em 355 a.C.). Ironicamente, Isócrates denuncia em seu discurso político o excesso de liberdade usufruído pelos cidadãos de Atenas e prega o retorno a uma democracia em que só poderiam ser eleitos os cidadãos mais qualificados, o que acabaria constituindo uma aristocracia. O orador pedia, enfim, que fosse restaurado o Conselho do Areópago, que no passado exercera poderes ilimitados de guardião das leis, supervisão da educação dos jovens, entre outros. Em síntese, Isócrates buscava a restauração de uma antiga ordem. A influência da cultura grega na Areopagitica, discurso que se abre com a citação de um trecho de Eurípides, é indicativo do caráter humanista e secular das preocupações políticas de John Milton. Sua defesa da liberdade supõe a preocupação com os valores transmitidos pela cultura clássica; e, enfim, coma possibilidade de que outras sociedades, descuidadas de alguns princípios, também viessem a se extinguir. Mas é necessário reconhecer que, em muitos momentos, o orador inglês, que escrevia em grego e latim, prejudicava a sua sintaxe e o seu estilo, tornando as sentenças longas, confusas e obscuras; ou então criava distorções deliberadas ou referências ambíguas na defesa de seus argumentos.1 Como se estivesse diante da Assembleia Geral de Atenas, John Milton, em seu discurso fundamentado no lógos areopagitikós, conclamou o Parlamento inglês a não reduzir o seu poder com base numa Ordenação que previa a censura prévia.

O principal objetivo da Areopagitica, como define seu autor, é a defesa da total liberdade de imprensa, a fim de tornar possível o maior avanço do conhecimento e da verdade. Desde a sua publicação, o panfleto tem sido exaltado como o texto mais radical sobre a inutilidade da censura, a defesa apaixonada da circulação de todas as idéias e a necessidade da tolerância religiosa. Comumente descrito como a maior obra em prosa de John Milton e um dos mais importantes documentos na história da liberdade, Areopagitica está marcada pela profunda intensidade do idealismo político de seu autor. Os argumentos de Areopagitica estão estruturados em quatro partes:

  1. demonstração histórica de que a censura é um produto da Inquisição católica e, como tal, contrária ao pensamento da Inglaterra protestante. A censura, como demonstra o autor, esteve sempre associada à tirania e, nos tempos modernos, ao reacionarismo católico do Concílio de Trento;

  2. afirmação de que o bem e o mal estão inextricavelmente ligados, não sendo possível, portanto, coibir apenas um deles sem atingir profundamente o outro. Faz-se uma defesa do benefício liberdade de imprensa, uma vez que o conhecimento e a verdade surgem do contato com o que existe de bom e de mau nos livros, cabendo ao leitor buscar o que neles mais lhe agradar. Mesmo autores ímpios, argumenta, tinham sido lidos com proveito por apóstolos e teólogos, ao longo do tempo; (…)

  3. condenação da censura prévia de qualquer livro, em nome da razão e da liberdade, fundadoras da virtude. Salienta-se o aspecto da inutilidade da censura, uma vez que os maus livros são verdadeiramente combatidos quando suas idéias ficam expostas, e não quando permanecem ignoradas. A censura, esclarece, jamais conseguirá ser completa ou eficiente. O retrato grotesco dos censores é insuperável na sua ironia e, como almejava o orador, no poder dissuasivo; (…)

4) demonstração de que é impossível tornar as pessoas virtuosas pela coerção externa, já que o combate à corrupção moral se faz com o poder da escolha racional. A censura impede que se exerça a faculdade do juízo e da escolha. John Milton especula sobre os efeitos da censura: desestimular todo tipo de estudo, humilhar a nação, criar um ambiente de perene estupidez. Os próprios presbiterianos já teriam amargado a censura, em tempos passados, e não deveriam permitir o retorno a uma situação tão indesejável. (…)

1. Cf. Keith W. Stavely, The Politics of Milton’s Prose Style (London: Yale University Press, 1975), p.66

2. Cf. James Holly Hanford, A Milton Handbook (London: G. Bell and Sons, 1927), p.74

3. Em conferência apresentada em março de 1995 na Yale Law School, Vincent Blasi informa que existiam “quatro censores para averiguar livros de Direito, três para livros de Filosofia e História, e um para ‘Matemáticas, Almanaques e Prognósticos'”. “Milton’s Areopagitica and The First Amendment”, localizado em http://www.yale.edu/lawweb/ lawschool/occpaper/blasi.htm, p.2.

4. “Areopagiticus”, em Isocrates (traduzido por George Norlin), Volume II (London: Harvard University Press, 1992), p.99-157. Uma leitura crítica do texto grego é feita por Paul M. Dowling, Polite Wisdom – Heathen Rhetoric in Milton’s Areopagitica (London: Rowaman and Littlefield, 1995), p.3-8. Dowling defende que John Milton valia-se com habilidade das suas fontes históricas, citando-as, nem sempre com exatidão, para corroborar seus argumentos.

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