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Um Animal Noturno: o Poeta Simbolista

Ce crapaud-là c’est moi.

Tristan Corbière

1. SITUAÇÕES

O poeta simbolista não sabia se era um eleito ou um iludido. Se era um rei ou uma ruína. A ciência roubara-lhe o ideal: a angústia suprema do poeta simbolista era testemunhar os ciclos vitais deteriorarem-se. Por isso o seu mórbido interesse pelos crepúsculos e por todos os estados intermediários da matéria ou ainda pelas transições e pela agonia: o poeta simbolista flagrava o instante de mutação da vida e sua gradual decadência. Augusto dos Anjos foi o poeta que mais sofreu a terrível dualidade entre o espírito elevado e a carne putrefata: era quem mais denunciava a condição humana e miserável do ser e vislumbrava em todo túmulo a fragilidade de sua própria vida. A poesia de Cruz e Sousa, por sua vez, filia-se também à grande tradição dos que se preocuparam com a morte – mas enfatizou a questão racial por meio de uma ambígua e torturante admiração pelas teses científicas. Pois como poderia um homem negro elevar-se pelas ideias e pelos sentimentos se o determinismo fazia crer na existência de raças inferiores e superiores? O poeta paraibano tornava-se consciente da degenerescência da matéria viva; o poeta catarinense, do paradoxo de ser a um só tempo poeta e negro, já que ele mesmo reconhecia a justeza das ideias de Haeckel e Darwin: a sua morte tinha sido decretada ainda durante sua vida. O poeta simbolista esteve geralmente preocupado com a perda do seu ideal: não havia salvação possível e sua alma era a contingência de um corpo fadado ao desaparecimento. Interessa saber, portanto, como o poeta simbolista interpretou a condição de ser escritor.

A melhor metáfora do poeta simbolista foi a de um animal – a de um animal noturno ou de sentido expressivamente pejorativo. Muitos foram lembrados e citados: lagartixa, morcego, aranha, corvo. Porém, por diversas características adiante estudadas, o sapo transformou-se num tipo predominante da poesia simbolista. Foi o sapo – mais do que qualquer outra imagem ou metáfora – que definiu com maior precisão a condição do poeta simbolista e expressou todas as suas terríveis vivências.

Consultando-se toda a mitologia sobre o animal, mesmo sem o cuidado de esgotar todas as fontes, aprende-se que a imagem do sapo é semelhante àquela concebida pelos simbolistas. Ou seja: que a feiura e a inaptidão para a vida já eram desde priscas eras sinais marcantes do animal. Suas qualidades inatas são verdadeiros estigmas existenciais: por causa delas, e querendo defender-se de tudo e de todos, o sapo transformou-se num ser solitário e, mais ainda, num maldito. Habitando pântanos e lugares inundados pela treva, o sapo simboliza a contrariedade. A luz do sol – uma energia vital – é para ele uma ameaça: a luz revela a sua feiúra e o calor seca a lama em que vive e se esconde. Por trás de seu aspecto repugnante, contudo, esconde-se pura fragilidade: o sapo é sempre a iminência de sua própria morte. Ele não é um elemento a mais na paisagem, porém uma condição, uma situação que prevê a qualquer momento a sua defesa: seja a peçonha, os olhos saltados das órbitas, a cor verde ou parda com que simula o seu desaparecimento, confundindo quem o procura, o coaxar que não é jamais admirado. Enfim, um mau sinal. O sapo representa ainda uma consciência triste: não consegue converter os seus pulos em movimentos contínuos, e tais movimentos, por sua vez, são ameaçadores. Signo do sofrimento, o sapo vive a instabilidade entre água e terra – pois se movimenta nos dois elementos. Essa situação intensifica a sua transitoriedade e a sua necessidade de fuga: o sapo existe e não está em lugar nenhum. Ou melhor: ele existe e está em sua metamorfose, em sua simulação, em seu veneno, em sua morte. Um animal próximo do silêncio, cuja experiência promoveu um modus vivendi, uma sabedoria.

Existem, contudo, outros aspectos concorrentes aos da feiura e da inaptidão: o sapo é também símbolo da luxúria. Um animal que pode inchar-se, quando deseja ficar parecido com outro animal, e pode estourar de desejo – o desejo que se mata a si mesmo. Na análise desse símbolo, a feiura do sapo e, claro, a sua morte, são moralizantes, pois afirmam que o desejo é mau. O desejo maltrata o corpo e é uma prova – se se pensa na concepção grega – de que ninguém deve ultrapassar o seu métron, de que o desejo é uma desmedida e uma agressão à harmonia. Na Grécia, uma das cortesãs mais celebradas séculos depois pelos poetas parnasianos – Frinéia – tinha o seguinte apelido: Sapo. E mais: o sapo é também uma das formas do demônio. Enfim, ele é uma interdição. Nada mais afastado da forma clara das coisas ao sol do meio-dia: o sapo é amorfo, de corpo mole, viscoso e rasteiro; move-se na escuridão e passa horas absorto – como se estivesse pensando. Seu coaxar carregado de tons sinistros é um diálogo travado com o breu que o rodeia e com a lua: mitologicamente, afirma-se que um sapo devora a lua – e faz-se o eclipse. Com o sapo, tudo escurece.

O sapo sempre foi um animal de expressiva simbologia literária, e já Esopo apresentou um bem definido imaginário sobre o animal em suas fábulas. Escritas depois das primeiras incursões de Hesíodo, existe ali uma verdadeira mostra de exemplos morais cujos protagonistas são sempre animais de fala humana, embora vivendo situações estritamente animais. Com essa alegoria, e ainda com tramas curtas e bem desenvolvidas, Esopo cria momentos perfeitos para a palavra final moralizante e, não raro, com humor. É justamente dessa palavra final, e mais talento para metrificação e rima, que La Fontaine lançará mão para ser considerado por Taine como o maior poeta francês. [1] Contudo, Esopo não escreve exatamente sobre sapos, e sim, mais especificamente, sobre bátrachoi, sobre simples rãs. Mesmo assim, os sinais particulares do sapo já podem ser entrevistos na sua configuração, e em pelo menos uma das fábulas, “As Rãs Que Pedem Um Rei” [2], uma visão sarcástica do Poder, a imagem do sapo pode ser mentalmente evocada por qualquer leitor como a de Rei das rãs. Esopo já havia escrito sobre o tema das rãs e dos sapos: nas suas fábulas, as rãs morrem esmagadas porque são imprudentes; não podem prestar culto ao Sol, como fazem todos os outros animais, porque o Sol seca os pântanos; e, enfim, são as mais sofredoras de todo o bestiário esopiano, e servem de consolo aos outros animais que se lamentam dos próprios sofrimentos. Dizia uma rã a um asno que acabara de levar um tombo em seu pântano, e chorava:

Amigo! Que farias tu se ficasses aqui tanto 

tempo quanto nós, tu que, caído aqui por um 

momento, lanças tais suspiros? [3]

Não é exagero afirmar, portanto, que rãs e sapos sofrem continuamente – de tal modo que seus sofrimentos convertem-se a um só tempo em medida e consolo da existência. Todas as amarguras, todos os desesperos, frente à infeliz existência desses animais, tornam-se menores, atenuadas, até necessárias. Sapos e rãs: na Natureza, não há maior castigo.

Acrescentando poucos temas aos de seu mestre grego, porém com maior poesia, as fábulas de La Fontaine são de tal modo incisivas e críticas que se dão ao luxo da intertextualidade. Numa delas, “O Sol e as Rãs”, o próprio Esopo não escapa de algumas farpas, pelo simples fato de ter sido pouco cruel com os animais verdes:

Esope seul trouvait que les gens étaient sots 

De témoigner tant d’allegresse. [4]

A má natureza das rãs, nessas fábulas de versos rimados, é bem pior: elas em geral invejam todas as outras formas animais; pedem constantemente ajuda aos céus, e nem os céus têm compadecimento de seus destinos. O tamanho do coaxar da rã, em comparação ao seu tamanho físico, é uma desproporção que mesmo Esopo não se furtou a fabular – o desejo da rã é engrandecer a partir de seu coaxar, mas, uma vez descoberto o simulacro, ela é esmagada. [5] Com a ajuda de outros animais, elas tentam vencer as dificuldades de seu meio, mas quase sempre fabricam desastres. [6]

Embora animais estigmatizados, acentua-se o caráter de sua sabedoria. Vítimas de tantos acidentes, as rãs acabam por engendrar um enorme conhecimento do mundo, e formam uma sociedade preocupada exclusivamente com a própria sobrevivência. Não é sem razão que La Fontaine reconhece inteligência em certas resoluções das rãs:

Pour un pauvre animal, 

Grenouilles, à mon sens, ne raisonnaient pas mal. [7]

Também importante, cabe notar que as rãs são animais coletivos, e o sapo, por sua vez, extremamente solitário. Nesse sentido, observe-se de que modo alguns traços – como, por exemplo, o do exagero – já estão delineados: as rãs representam o exagero em quantidade, ou seja, a profusão; o sapo representa o exagero em qualidade, ou seja, o excesso. Por sua vez, ambos representam o grotesco, como será caracterizado mais adiante. No entanto, pesa sobre cada um desses animais o estigma da insignificância. Ao mesmo tempo que reconhece a sabedoria das rãs, La Fontaine adverte em outra fábula acerca das filles du limon:

Grenouilles doivent se taire, 

Et ne murmurer pas tant: [8]

A sabedoria das rãs oscila entre o senso comum da vida – em que resignação é a palavra-chave – e a tentativa de escapar daquela condição. Ao pedirem um Rei, elas desejavam acabar com a anarquia; contra o Sol, não participam do culto que toda a Natureza lhe rende; e, enfim, mais infelizes do que qualquer outro animal, querem ascender justamente à categoria de outro. Esta insatisfação do sujeito, que passa a procurar uma imagem mais adequada à de seus desejos, é saborosamente captada por La Fontaine. Em “La Grenouille qui se Veut Faire Aussi Grosse qu’Un Bœuf” [9], a identificação da rã com o boi não poderia ser mais patética. E a sua morte, um fim natural. Impressionada com o porte do mamífero – e, lê-se nas entrelinhas, com a sua importância -, a rã incha seu corpo cada vez mais, tendo como testemunha a sua irmã, a quem de tempos em tempos pergunta se já tomou o aspecto daquele belo animal. Como todo bom espelho, a irmã diz sempre não, e a rã estoura a si e ao seu desejo. A leitura psicanalítica da fábula é óbvia [10], mas interessa sobretudo reter a informação dos dois casos extremos que ocorrem com as rãs: por um lado, a resignação; e, por outro, a revolta. Ambos destruidores, ambos atravessados pelos sinais do sofrimento e da morte. A poesia francesa, fonte primordial do poeta simbolista brasileiro, idealizou paisagens pessimistas e pântanos que aludem à estagnação. Num de seus acessos crepusculares, Paul Verlaine escreveu em “L’Heure du Berger”:

La lune est rouge au brumeux horizon; 

Dans un brouillard qui danse la prairie 

S’endort fumeuse, et la grenouille crie 

Par les joncs verts où circule un frisson; [11]

O mesmo poema prepara o leitor para o brusco aparecimento da estrela Vênus, que a um só tempo anuncia a chegada de sua luz e a da noite. Tal imagem merece uma descrição mais acurada, em especial porque se relaciona a alguns procedimentos que serão típicos de uma moral simbolista, ou melhor, de uma moral do grotesco. A transição entre um mundo obscuro, de objetos mal definidos, e um mundo claro, habitado por seres bem proporcionados, pode ser compreendida como a de dois espaços opostos que representam tão-somente o ciclo da vida. Como anotou Mikkail Bakhtine, “la terre est le principe de l’absorption (la tombe, le ventre) en même temps que celui de la naissance et de la résurrection (le sein maternel).” [12] Essa asserção pode ser estendida ao universo penumbrista, em particular àquele no qual tanto a paisagem quanto os seus habitantes assumem uma configuração transitória. Nesse sentido, o universo estará sempre organizado de maneira trágica, atrelado aos sentimentos de luto e melancolia – sintoma de uma depressão cuja forma se concretiza apenas no futuro. Pois, a acreditar ainda em Bakhtine, “l’image grotesque caractérise le phénomene en état de changement, de metamorphose encore inachevée, au stade de la mort de la naissance, de la croissance et du devenir.” [13]

No mesmo tom verlainiano de um crepúsculo de atmosfera lúgubre, Tristan Corbière escreveu “Paysage Mauvais”, em que os elementos da paisagem simbolizam um certo horror:

– Les crapauds 

Petits chantres mélancoliques 

Empoisonnent de leurs coliques, 

Les champignons, leurs escabeaux. [14]

Do poeta de Les amours jaunes (1873) não se pode esperar coisa séria. Magnífica encarnação de poète maudit, considerado por Otto Maria Carpeaux como dono de um “humorismo selvagem e blasfemo” [15], Tristan Corbière não foi alguém exatamente preocupado com o sentido dramático da imagem do sapo, mas, via humor, traçou uma das linhas básicas dessa imagem, em “Le Crapaud”: a identificação do poeta com o sapo. Um outro maldito, um outro estranho, Pedro Kilkerry, fez uma excelente tradução desse soneto – incluindo-se também na imagem citada. Aqui, ao lado do seu humor e do seu declarado niilismo (Kilkerry, leitor de Nietzsche), a sua feiura é um ponto biográfico que não pode ser esquecido como fundamental à urdidura de sua poética – a feiura, um tema crucial do Simbolismo. O soneto de Corbière e o de Kilkerry (notar a inversão dos quartetos e dos tercetos), postos lado a lado, talvez sejam esclarecedores; da mesma maneira como aquele verso supremo, “Rossignol de la boue…“, que é certamente a definição mais completa e radical do sapo, convertido em ponto de encontro da suprema beleza e da suprema feiura.

LE CRAPAUD

Un chant dans une nuit sans air… 

– La lune plaque en métal clair 

Les découpures du vert sombre.

…Un chant, comme un écho, tout vif 

Enterré, là, sous le massif… 

– Ça se tait: Viens, c’est là, dans l’ombre…

– Un crapaud! – Pourquoi cette peur, 

Près de moi, ton soldat fidèle? 

Vois-le, poète tondu, sans aile, 

Rossignol de la boue… – Horreur!

– Il chante. – Horreur!! – Horreur pourquoi? 

Vois-tu pas son oeil de lumière… 

Non: il s’en va, froid, sous sa pierre. 

Bonsoir: – ce crapaud-là c’est moi. [16]

O SAPO

(Tristan Corbière)

Noite sem ar e esse canto, e esse canto… 

– E a lua, em metal claro, unindo quanto 

Rasgão de verde escuro, árvore, alfombra…

Um canto, com um eco, muito vivo, 

Enterrado, acolá, na mouta… esquivo, 

E, agora cala. Vem, é ali, na sombra.

Vem – Um sapo! – Que medo que te deu! 

Não vês, bem perto, aqui, teu fiel soldado? 

Mas, olha-o, sem asa, é um poeta pelado, 

O rouxinol da lama… – Horror! – Não meu.

E cantar. – Horror! – E por que horror? Volveu 

(Nem viste?) um longo olhar, iluminado… 

Não: escondeu-se a uma pedra, o desgraçado 

Lá vai… Boa noite. – E o sapo, não sou eu? [17]

É tentador observar a diferença entre a já citada lua de Verlaine e a de Corbière, que surge com muito mais intensidade. A recriação de Kilkerry é extremamente feliz: transpôs as oito sílabas métricas dos versos franceses para os decassílabos com que traduziu mais livremente. As pequenas variantes devem ser analisadas não apenas pela necessidade de métrica e de rima, mas pelo próprio diálogo do tradutor com o original, sobreposto ao diálogo de alguém que, a passeio, aponta e define o sapo.

2. O ROUXINOL DA LAMA

O Simbolismo brasileiro foi muito pródigo em sapos. Na soberba antologia crítica organizada por Andrade Muricy acerca do período, o sapo foi classificado como “temática”, e não como “tipo” do imaginário poético. [18] Entretanto, é com certeza o “tipo” que mais se aproxima da imagem do poeta proposta pelos simbolistas. Sensível à presença do animal no bestiário dos poetas, Andrade Muricy recolheu o maior número possível de referências ao sapo – transcrevendo até mesmo trechos de romances -, o que só confirma a grandeza e o apuro de seu trabalho.

A imagem do sapo no Simbolismo brasileiro conhece algumas constantes (a solidão, a feiura) e algumas variáveis (o pensador, o injustiçado). A solidão é a característica predominante nos poemas e indica, também, a condição de insulamento. O pântano representa o espaço que não existe e está na iminência de inserir-se no mundo. Não é contraditório, pois, que o sapo se dirija à lua, que emita cantos de lamentos, numa aproximação tácita com tudo o que o cerca. A condição de poeta insulado e a de poeta que vive dentro de si mesmo, num estado de exílio, não foi de todo rara no Simbolismo. Os versos de Emiliano Perneta, a esse propósito, devem ser lembrados:

O meu lugar é aqui, no seio desta ruína, 

Destes escombros, que reluzem como lanças, 

E destes torrões que a febre inda ilumina!

Sim, é insulado, aqui, no cimo, bem o sei! 

Entre os abutres e as desesperanças, 

E dentro deste horror sombrio, como um Rei! [19]

Se o afastamento do mundo era uma atitude comum e até compreensível – embora sob o peso das ruínas e do horror sombrio -, a condição de ser Rei e a sensação da febre que “inda ilumina” parecem ser suficientes para que se continue, sem qualquer remorso, a não trocá-las por outra vida. A ideia de cimo é representativa dessa elevação sobretudo espiritual.

Entretanto, bem pesadas as diferenças, a solidão do sapo é ainda mais dramática que a do poeta em sua torre: é pior em qualidade, é mais anuladora, é mais radical e maldita. A penumbra do poeta em sua torre é imaginária e quase intelectual; a identidade do poeta com o sapo é física e vital.

E o sapo continua. Vai só. A solidão envolve-o, 

a treva protege-o. (…) Ai dele! porque

ninguém o quer, ninguém o ama…

(Gonzaga Duque: “Sapo!..”) [20]

Entrevado o poeta, a noite confunde-se com a sua existência. A treva – e, por extensão, a vida – é para ele uma faca de dois gumes. A sua aparição é sempre confirmadora de um terror.

Quando a treva se derramou serena e lenta – o focinho repelente de um enorme sapo surgiu no envesado rasgão de uma brenha. (…) Sob a fuligem da noite, ele não tinha forma precisa. (…) 

(Gonzaga Duque: “Sapo!…”)

(…) ele que anda rojo, 

E nem sabe, sequer, que existem tanto sóis, (…) 

(Euclides Bandeira: “O Sapo”)

À noite, (…) sai vagaroso e triste, (…)

(Alves de Faria: “Batráquio”)

A solidão e a treva simbolizam o desamor e o abandono. A recriminação feita ao sapo, por medidas extraídas à sua forma física, tem o evidente objetivo da anulação: o sapo, por suas características contrárias à vida, deve ser exterminado. Apenas um contratempo: ele sobrevive e parece desafiar a vida por possuir exatamente a forma proibida. Em casos extremos, essa forma proibida é a própria vida. Uma vez refeito o paralelo do sapo com a representação do desejo, torna-se clara a proibição: no desejo, pulam na penumbra o princípio da vida e o princípio de morte. A forma proibida do sapo guarda, portanto, sinais de ambiguidade: ele é o entrevisto, o dissolvido, o esboço mal acabado da Criação, um ser que escapou à perfeição. Nada pior para a mecânica harmônica do Belo, e nada mais terrível do que o seu triunfo na escuridão. Foi Wolfgang Kayser quem anotou que “a configuração do grotesco é a tentativa de dominar e conjurar o elemento demoníaco do mundo”. [21] De fato, deve-se entender a maldição que pesa sobre o sapo (metáfora da condição do poeta) como suas relações com o Mistério e parte de um conhecimento que desorganiza o mundo. A forma imprecisa do sapo é a forma precisa da existência maligna. Na composição do seu tipo, entram todos os elementos: a fartura é tanta, que muitas vezes é preciso cautela na análise. Não é à toa que Gonzaga Duque e Euclides Bandeira, escritores dos mais extensos e completos textos acerca do sapo, por vezes reconheçam e assumam as contradições do símbolo. O primeiro deles, depois de introduzir o sapo num ambiente penumbrista, tenta uma pequena defesa com o argumento de que todos os ataques ao animal baseiam-se apenas na sua feiura:

Teceram lendas, com os dedos ágeis da mentira, para o perseguir – ele é o agoiro que arrasta a desventura, é o bruxo dos feiticeiros, a alma do purgatório, o mensageiro do inferno. Se penetra o portal de uma choupana, fugindo aos temporais ou indo à caça dos destruidores, é que vem para secar o leite ao seio das mães, cegar as criancinhas, estuprar virgindades… E a água de que bebeu ficou salobra, a roupa em que se roçou transformou-se num cáustico… É o sapo!

(Gonzaga Duque: “Sapo!…”)

Gonzaga Duque abandona, sem dúvida, os mitos seculares acerca da presença do sapo e passa e questioná-los. O texto é claro: nele, a razão por vezes cede aos princípios da estética literária. Ao fim de tudo, esses princípios vencem: a lucidez do escritor não ultrapassa as imposições, muitas delas irracionais, do Simbolismo. Uma simples ordenação de categorias, contraditórias entre si, explica mais precisamente essa oscilação:

1) MOVIMENTO: 

E aos pulos, compassadamente, precavendo-se e perscrutando, vai tangendo (…) um aviso. 

(Gonzaga Duque: “Sapo!…”)

Mas ele está ali, quieto, desprevenido, 

Descuidado de si, do mal, das traições; 

(Euclides Bandeira: “O Sapo”)

2) CARACTERÍSTICAS: 

Anfíbio, venenoso, ovíparo, (…) 

(Alves de Faria: “Batráquio”)

No entanto, não ferve a peçonha nas suas mandíbulas, (…) 

(Gonzaga Duque: “Sapo!…”)

É pacífico e bom, mas é feio e repulsivo. Bom e simples animal, solitário e inofensiva criatura, (…) não, não podes ser bom. És mau e estúpido.

(Gonzaga Duque: “Sapo!…”)

O mal-estar no mundo, mensagem do sapo, é um tema de desespero a que o Simbolismo soube dar retoques de intensa dramaticidade, assim como, por exemplo, na imagem do emparedado ou da monja ou do asceta, que transitam por espaços fechados. Mais uma vez, as atitudes frente à existência do sapo oscilaram entre a densidade da meditação e o grito de revolta. No poema “Eu”, que abre a produção ainda pouco conhecida de Marcelo Gama, o poeta escreve:

Sou feio se não mente o juízo dos espelhos,

nem é falsa a expressão do que olha para mim!

Também, onde habitar, senão num corpo assim,

esta alma que me põe sangrentos os joelhos? [22]

Eis a síntese: corpo e alma feios. Ou melhor: um corpo que não é pura aparência, mas retrato fiel do espírito. Marcelo Gama, no mesmo poema, confirma:

Sou imberbe, indolente e nem sempre ando limpo… [23]

A feiura, aliás, foi um problema com que muitos poetas simbolistas se envolveram – especialmente porque ela significava mais um motivo de distanciamento do mundo e de marginalização. Além disso, aqueles poetas tinham um certo prazer em acentuar as qualidades assimétricas do animal (que correspondiam, por exemplo, ao corpo feio e à alma eleita). Imaginavam eles que a feiura participava com igualdade das realizações na Natureza – e, portanto, era evidente que a Natureza também era má e imperfeita. Se Marcelo Gama possuía corpo e alma feios – num sistema de complementaridades -, o mais provável é que os demais poetas preferissem um sistema de compensações. Isso ocorre, por exemplo, com o maior dos poetas simbolistas, Cruz e Sousa, ao escrever em “Psicologia do Feio”, do livro Missal (l893), esta louvação:

Entretanto, eu gosto de ti, ó Feio! porque és a escalpelante ironia da Formosura, a sombra da aurora da carne, o luto da matéria doirada ao sol, a cal fulgurante da sátira sobre a ostentosa podridão da beleza pintada. Gosto de ti porque negas a infalível, a absoluta correção das formas perfeitas e consagradas, conquanto tenhas também, na tua hediondez, toda a correção perfeita – como o sapo, coaxando cá embaixo na lodosa argila, tem, no entanto, a repelente correção própria do sapo; [24]

Desse modo, ressalte-se que o conflito estabelecido reside no próprio ser que possui corpo e alma, e não entre um corpo e outro corpo: o que, afinal, acontece no estado de isolamento… Da Costa e Silva, numa quase impiedosa autoanálise, buscava atenuantes para o estigma de toda a sua vida, e escreveu pelo menos dois poemas – “Ego…” e “…Sum” – para se confessar “o mais triste ser humano” e “figura hostil de homem selvagem“:

Sou, talvez, o mais triste ser humano 

Que vive sob o céu ou sobre o solo, 

Porque possuo o espírito de Apolo 

Na feia catadura de Vulcano. [25]

Embora o estranho aspecto, feio e rude, 

Desta figura hostil de homem selvagem, 

Tenho a animar a minha juventude, 

A beleza da força e da coragem. (…) 

A Natureza, que nos seus dons reparte, 

Porque feio me fez, deu-me a vertigem 

De lutar e vencer em toda parte. [26]

Quando ocorre, no Simbolismo, oposição ao outro, em geral ocorre a descoberta de uma alma incompatível. Apenas para acentuar a importante produção de Marcelo Gama, é forçoso citar os versos em que este problema é tratado de maneira um tanto inusitada. A feiura da alma tem algo de “viscoso”, confundindo-se, por exemplo, com o corpo do sapo, ou, no caso, com um molusco:

Tens o corpo que eu busco… 

Mas tu’alma o atraiçoa, e desarma a cilada: 

causa a mesma impressão que em concha nacarada 

um viscoso molusco. [27]

Compare-se essa aproximação do poeta de corpo e alma feios da amada de corpo belo e alma feia com o sapo que é sempre recriminado por seu aspecto físico:

Olhai atentamente: é um sapo! E nada 

Mais asqueroso do que um sapo… E nada mais

Repugnante do que ele, (…) 

(Euclides Bandeira: “O Sapo”)

(…) o sapo, o vil batráquio, a imunda criatura!

(Alves de Faria. “Batráquio”)

Feio e fátuo a fingir de grande, gordo e guapo; 

Hediondo e humilde a inchar de empáfia e ocioso orgulho, 

Viscoso de vaidade, entronado no entulho, 

Cisma na solidão, sorno e soturno, o sapo.

(Da Costa e Silva: “O Sapo”)

Dos versos cheios de aliterações de Da Costa e Silva, que são do início ao fim uma agressão principalmente ao aspecto físico daquele animal, retira-se com sabor a definição “Viscoso de vaidade, entronado no entulho” que, ao lado do verso já citado “rouxinol da lama“, na tradução de Pedro Kilkerry, foram os momentos decisivos desse passeio pelos pântanos. Passeio doloroso: pois, à medida que se avança no terreno, o poeta tem a impressão de que fica cada vez mais parecido com o sapo. A paisagem física em que o sapo habita, por sua vez, está profundamente relacionada ao seu corpo: muito mais do que representar um mimetismo ardiloso, o corpo mantém relações ainda mais profundas; o que, de resto, não escapou a Bakhtine quando analisou a imagem grotesca do corpo em Rabelais: “ce corpus absorbe le monde et est absorbé par ce dernier” [28]. Inicialmente, levanta-se a possibilidade de ser o sapo um pensador, um ser que acumula experiências e reflete sobre sua condição. Mais tarde não haverá dúvidas: o sapo é poeta. Outra tendência faz do sapo um Rei e um patriarca. E outra, profundamente resignada, faz do sapo a encarnação da humanidade. Ao lado do “poète tondu” de Tristan Corbière, os questionamentos, e mesmo as hesitações dos poetas frente ao sapo-espelho se acumulam:

De resto, o sapo é assim, parece andar perdido 

Sempre em sérias e profundas cogitações. 

Ah! quem sabe se nesse animal tão rasteiro 

Que mal consegue erguer-se um palmo além do chão, 

Não há uma centelha, um vislumbre, um ligeiro 

Clarão da inteligência, um timbre de razão!… 

(Euclides Bandeira: “O Sapo”)

Ah! o sapo compreende o atascal de misérias 

Que afoga a Humanidade… (…) 

(Euclides Bandeira: “O Sapo”)

E sobe à superfície o rei das rãs, rotundo, 

Glabro e inchado, a coaxar no lamaçal do charco, 

Como o ser mais soberbo e singular do mundo! 

(Da Costa e Silva: “O Sapo”)

A identificação da imagem humanizada de um animal não é, evidentemente, novidade. Em geral, os conflitos resultantes da comparação ficam por conta da ausência ou da presença da razão, ligadas ao comportamento. Os versos ligeiros de William Blake, como em “The Fly”, não devem ser esquecidos aqui como exemplo dessas íntimas perguntas. A comparação entre duas realidades – a humana e a animal – não é, contudo, tão simples assim. Pois, ressalte- se, se um comportamento é animal, todo o universo imaginário muda, uma vez que a razão também sofre um deslocamento. Ao comparar-se com um sapo, o poeta não está sendo nivelado a um animal, mas a um outro poeta. Não há mais o risco de se comprometer com a imagem de um animal estranho, pois o poeta já se infiltrou o suficiente na pele de sapo para estranhar. Ele agora é estranho: ele agora é humano, demasiado humano. Torna-se passivo em sua condição, e a menos que defina o mundo à sua volta como pertencente à sua escolha existencial, tudo estará perdido. De resto, a aproximação entre a natureza humana e a natureza animal tem um forte motivo quando sustentada pelas qualidades do grotesco. [29] À beira dos seus próprios sinais, contemplando em tanques de água silenciosa a sua imagem, esse feio Narciso – um paradoxo dentre tantos paradoxos – vê na sua própria medida a definição do mundo.

E um momento quedou, como quem se recorda, (…) 

um momento quedou, mudo e perplexo. 

(Cruz Filho: “A Ilusão do Sapo”)

O mundo participa de sua decadência e afinal é solidário com seu desespero. Definições:

O mundo é um tremedal; envolve tudo a lama:(…) 

A Fé caiu no charco, o Bem em vil marnota. (…) 

Nada resta de impoluto; é uma vaza o Universo. 

Onde um canto de sol para o altar da Pureza? 

Há salpicos de lodo até no próprio verso! 

N’alma, no mar, na terra, em toda a natureza! 

(Euclides Bandeira: “O Sapo”)

Justamente por resistir a tais definições, o texto de Gonzaga Duque oscila entre o amor e o ódio ao sapo; e esses versos de Alves de Faria, em “Batráquio”,

Anfíbio, venenoso, ovíparo, a estatura 

não lhe mede jamais seus íntimos desejos.

são extremamente cômicos, já que apresentam as características de “anfíbio” e de “ovíparo” sob tom pejorativo.

Da mesma maneira, a suposta contradição entre o tamanho do sapo e o seu coaxar é aqui retomada sob o nome exato de “íntimos desejos”, com o qual uma interpretação psicológica das mais rasteiras pode dar conta. Outra contradição é a do sapo que, embora repleto de referências demoníacas, canta ao Céu. Esse cantar obscuro, inexplicável talvez, mostra uma ideia presente a todos os poemas: a de que a luz vem das trevas e de que o mundo se reflete na escuridão. Não existe contradição nessa atitude do sapo: o seu diálogo com a lua é, sob todos os aspectos, claro:

É por nós que ele coaxa uma nênia sentida, 

Erguendo para os céus os olhos de topázio… 

(Euclides Bandeira: “O Sapo”)

Vitimado por sua própria condição, o sapo acaba forjando uma atitude irônica: o seu “gozo profundo” e o seu júbilo nada mais são do que essa contemplação crítica. A Natureza, e mesmo os aspectos da Fé celestial, encontram-se num estranho limite entre o misticismo e o humor. Essa aparente disparidade possui uma boa explicação: em sua relação ritual com os elementos noturnos (a lua, principalmente), o sapo “compreende tudo”; mas, interditado por sua feiura, não proclama sua compreensão, e passa a viver o próprio significado do seu conhecimento: o sapo é, mais do que qualquer outro, aquele que conhece. Não parece existir outro animal mais consciente de suas mazelas e de suas limitações do que ele; e, entretanto, guarda para si toda compreensão. O que é a ironia senão um conhecimento que se critica a partir de sua própria linguagem? Não é por outro motivo que a ambiguidade do sapo, marcada também no seu corpo, encontra-se estreitamente ligada à concepção do prazer: em geral, tão disforme, tão impreciso, tão astutamente indefinido como o sapo. Untuoso; pegajoso; escorregadio. A atitude irônica e a definição do prazer são, agora reunidas, as qualidades principais da razão do sapo. Uma razão edificada com blocos contraditórios, de confusa geometria, em que as relações assumem por vezes aspectos decisivamente opostos às próprias relações. [30] Tome-se o exemplo do canto à lua lançado pelo sapo: sendo este sapo uma configuração também demoníaca, supõe-se que a sua Fé, elevada embora, contenha indícios de heresia. Saber se o sapo, com todos os seus maus sinais, poderia ainda assim “compreender tudo” e pensar o mundo com lucidez é uma das questões mais renitentes dos poetas: o imaginário simbolista simplesmente desconfiava que a razão tivesse raízes no Mal; não é outro, por sinal, o princípio da poesia satânica de Charles Baudelaire. Uma vez compreendidos esses pontos, torna-se mais simples observar que: o tamanho do sapo, insignificante, reflete a sua significância; que o sapo é uma feiura, porém sem se anular: uma feiura com importância, já que outro valor mais alto se alevanta. Tais contradições estão perfeitamente afinadas. São inumeráveis os casos, quase sempre moralizantes, em que o elemento posto na treva emite luz; símbolo de determinação, este elemento consegue vencer com força própria a obscuridade que o ronda e o ataca. Num poeta como Duque-Costa, esta imagem produziu o mito da Dama das Camélias, nominalmente citada no soneto IV de “Flor Sentimental” e em “Lótus”. Essa espécie de Lucíola luciferiana, a iluminar com os archotes do desejo o seu próprio caminho, é uma bem acabada imagem da luz que escapa à obscuridade. Um outro bom exemplo é o do sapo. Única e fatídica diferença: a mulher muda de condição; o sapo, jamais. Ele é, muito mais do que ela, um símbolo de permanente condenação. Mas, até o momento em que a sua forma animal não vem à tona, o pântano onde o sapo vive é também metáfora bem urdida pelo Simbolismo e carregada da mesma ideologia luzente. Duque-Costa e Faria Neves Sobrinho fornecem dois dos melhores exemplos. Este último, num poema que soa como salvador de almas sujas, escreve um argumento moral na observação dos pântanos:

Olha: o pântano é todo 

feito de vasa e lodo. 

No entanto, em noites claras, é de vê-las: 

na água malsã que a vasa está cobrindo, 

chispam, tremeluzindo, 

cintilações de estrela. 

(Faria Neves Sobrinho: “O Pântano”)

Já Duque-Costa exibe um soneto de título por si sugestivo, que é também moralizante e salvador, no caso, do “homem mais desgraçado deste mundo“:

(…) no fundo 

de um charco, num insólito contraste 

germinam lírios, 

(…) como num pantanal, floriu um poema. 

(Duque-Costa: “Pantanal Florido”)

A floração é radiante: se nela estiver o sapo, entende-se que ele emita, em sua súbita presença, não apenas canto, mas luz.

De outra luz, e em momento diferente, Manuel Bandeira se utilizou para escrever o conhecidíssimo “Os Sapos”, sátira ao parnasianismo, embora o próprio Manuel Bandeira não admita isso como primeiro motivo. [31] Com essa imagem-chave, que em seu poema representa muito mais certa decadência da poesia, ele escreve, reafirmando as características do sapo já citadas até aqui:

Enfunando os papos, 

Saem da penumbra, 

Aos pulos, os sapos. 

A luz os deslumbra. (…)

Lá, fugido ao mundo, 

Sem glória, sem fé, 

No perau profundo 

E solitário, (…) [32]

É assim, criticando com ritmo e com sabor, que a raça dos sapos luta à sua maneira para saber quem foi rei, num confronto. Aqui, a imagem do sapo atinge o máximo de ironia e de humor, embora conserve, leia-se a citação, a solidão e a maldição de não possuir glória e fé. A luta é mesmo vã.

A posição à margem, à beira, à borda é – muito mais do que uma iminência – um pedido. A ideia central da identificação do sapo com o poeta é a da sobrevivência. E essa ideia se fundamenta num só argumento: o sapo possui o sentido da beleza. A sua comparação com o poeta decorre não apenas da penosa condição de um sujeito que séculos atrás foi expulso da República platônica, mas de um amante que sente gozos ao contemplar a Natureza. O seu maior acidente é ser repulsivo: isso causa acidentes à Natureza que ele mesmo considera bela. Torna-o ameaçador, embora o sapo não mate. Triste sina. Acerca disso, Gonzaga Duque é lapidar: “Como não mata o homem, o homem não o evita, esmaga-o“. Com a sua “doce alma de poeta”, a situação é cada vez mais terrível, e a fuga é o único refúgio, embora refúgio interminável e contínuo. Esse reinado rasteiro não esconde a sua verdade: é a perda do Poder, a encarnação de um “patriarca do paul”, de um “entronado no entulho”, um “rei d’água estagnada” cuja coroa é lodo e obscuridade. E o poder que brota nas trevas leva-o a professar o “despeito do céu”. As contradições pululam mais do que o seu próprio movimento. O sapo necessita de uma nova condição e, à maneira dos desesperados, ensaia até mesmo a heresia para chegar a ela. Ensaia, com seu tamanho, um desejo monstruoso: o sapo é pura expectativa. Tudo nele é exagero, a significar uma abundância de sentidos. Isso explica que categorias como as de “anfíbio” e “ovíparo” sejam considerados como valores sórdidos; e que até mesmo um “tuberculoso” seja conferido ao seu estado de saúde… Seus olhos saltados e seu papo inchado são, não há dúvidas, o excesso. Esse excesso adormece nos pântanos de água estagnada, e esses pântanos representam, mais do que um esconderijo, uma possibilidade, seja ela de vida ou de retorno à luz. Se, ainda uma vez, forem resgatados os principais aspectos do grotesco, será evidente a importância da “desmedida”, da “desproporção” e da “deformação” como dimensões próprias do sapo. Bakhtine e Kayser, os principais teóricos do grotesco, concordam na análise: o crítico russo deixa entrever sinais de evidente conotação sexual; já o crítico alemão, referindo-se a estampas indianas, vê na dimensão grotesca e colossal uma tentativa totalizante. Como foi analisado em dois poemas acerca do tema, o sapo se esconde sob águas em que cintilam estrelas. O seu diálogo com pontos luminosos é também um ponto de fuga. No “naufrágio de luz” o sapo não naufraga: dissolve-se em possibilidade. Muitas vezes ela é representada por diamantes, topázios, rubis e esmeraldas, como sentimentos puros e duráveis. Tudo faísca, tudo lampeja: luzes fátuas que travam, pouco a pouco, um entendimento. O pensador é tudo o que resta: um œil de lumière que espera, na sua imobilidade, compreender o poeta. Ele não desaparece porque a sua circunstância também não desaparece: e toda circunstância cria um poeta. Antena da raça, no aforismo poundiano, a herança poética simbolista é preservada. Apenas desse modo torna-se possível compreender certa moral nada consoladora: assim como o oásis é a salvação do deserto, o pântano é a maldição da terra.

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[1] H. Taine, La Fontaine et ses fables (Paris: Hachette, 1947), p. 342-346.

[2] Esope, Fables (Paris: Les Belles Lettres, 1960, 2ème édition), p. 32.

[3] Esope, “L’Âne et les Grenouillles”, Op. cit., p. 120.

[4] La Fontaine, Fables et contes (VI, 12), (Paris: Gallimard, 1954), p. 142.

[5] Cf. “Le Lion et la Grenouille”, Fables, p.88.

[6] La Fontaine, “La Grenouille et le Rat”, Op. cit. (IV, 11), p. 101.

[7] La Fontaine, Op. cit. (VI, 12), p. 142.

[8] La Fontaine, Op. Cit., “Le Soleil et les Grenouilles”, p. 317.

[9] La Fontaine, Op. cit. (I,3), p. 32.

[10] Woody Allen filmou Zelig (1983), a história de um homem cuja necessidade de se identificar com as outras pessoas era tão radical que ele acabava assumindo as suas características físicas. O argumento conduz, sem tirar nem pôr, à mesma fábula.

[11] Paul Verlaine, Oeuvres poétiques complètes (Paris: Gallimard, 1962), p. 73.

[12] Mikkail Bakhtine, L’œuvre de François Rabelais (Paris: Gallimard, 1970), p. 30.

[13] Op. cit., p. 33.

[14] Tristan Corbière, Oeuvres poétiques complètes (Paris: Robert Laffont, 1980), p. 475. A tradução de Augusto de Campos, por sua criatividade, merece citação: “E os sapos. Ei-los, /Anões de vozes melancólicas, / Que envenenam com suas cólicas / Os cogumelos, seus escabelos.“, in Verso reverso controverso (São Paulo: Perspectiva, 1978), p. 217.

[15] Otto Maria Carpeaux, História da literatura ocidental, vol. 6 (Rio de Janeiro: Alhambra, 1982, 2a edição, revista e atualizada), p. 1588.

[16] Tristan Corbière, Op. cit., p. 419.

[17] Apud Augusto de Campos, ReVisão de Kilkerry (São Paulo: Brasiliense, 1985, 2a edição, revista e aumentada), p.101.

[18] Andrade Muricy, Panorama do movimento simbolista brasileiro, vol. 2 (Brasília: MEC/INL, 1973, 2a edição), p. 1227.

[19] Ilusão e outros poemas (Porto Alegre: GRD, 1966), p. 94- 95.

[20] Quando não indicada outra fonte, os textos citados encontram-se na antologia organizada por Andrade Muricy.

[21] Wolfgang Kayser, in O grotesco (São Paulo: Perspectiva, 1986), p. 161.

[22] Marcelo Gama, Via-sacra e outros poemas (Rio de Janeiro: Sociedade Felipe d’Oliveira, l944), p.9.

[23] Marcelo Gama, Op. cit., p. 11.

[24] Cruz e Sousa, Obra completa (Rio de Janeiro: José Aguilar, l96l), p.412.

[25] Da Costa e Silva, “Ego…”, in Poesias completas (Rio de Janeiro: Cátedra/INL, l976, 2a edição, revista e anotada), p. 215.

[26] Da Costa e Silva, “…Sum”, Op. cit., p. 216.

[27] Marcelo Gama, “Teias de Aranha”, Op. cit., p. 27.

[28] Mikkail Bakhtine, Op. cit., p. 315.

[29] Cf. Wolfgang Kayser, in Op. cit., p. l57: “Há animais preferidos pelo grotesco, como serpentes, corujas, sapos e aranhas – os animais noturnos e os rastejantes, que vivem em ordens diferentes, inacessíveis ao homem. O grotesco gosta, ademais, de todas as sevandijas. Em parte pelos mesmos motivos, ao que acresce também a proveniência pouco clara”.

[30] Affonso Romano de Sant’Anna, numa breve referência à imagem do sapo na poesia simbolista, observou: “a natureza anfíbia desse ser corresponde à estrutura dupla entre o alto e o baixo, o puro e o impuro”. Cf. O canibalismo amoroso (São Paulo: Brasiliense, 1984), p. 145.

[31] Cf. “Reportagem Literária”, depoimento concedido a Paulo Mendes Campos, in Manuel Bandeira – Fortuna Crítica 5 (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, l980), p. 86.

[32]Manuel Bandeira, Estrela da vida inteira (Rio de Janeiro: José Olympio, 1976, 6a edição), p.46 e 47.

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